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"Não quero ser como Sauron": A sabedoria cristã na Sociedade do Anel


 Qual é o grande ponto de O Senhor dos Anéis? Sem dúvida, muita coisa pode ser encontrada na saga: o conforto do lar trocado pela vastidão lá fora, a ameaça de grandes esquemas fora do nosso controle, o descobrimento de culturas riquíssimas, amizades, lendas, poesia, e todo um mundo de significados e experiências. No entanto, creio que o principal fio condutor — o mito em torno do qual a história toma corpo — é este: o Maligno só será derrotado por alguém que vá desarmado até ele. Desde o concílio de Elrond isso fica explícito, mas já está implícito na conversa de Gandalf e Frodo sobre a história do Anel, e mesmo logo no início, quando Bilbo precisa abrir mão do seu poder. Já nas primeiras páginas descobrimos que esta não é a história do exército do Bem contra o exército do Mal, e muito menos a história de um “exército de um homem só” guerreando contra o Tirano maligno — na verdade, é a história do Bem humilde que carrega sozinho um fardo até o campo do inimigo, sem lutar. 


 

Gandalf não quer ser Senhor


Para embasar essa proposta, vamos fazer uma leitura atenta da conversa em que Gandalf rejeita o Anel, no capítulo 2 de A Sociedade do Anel:


“[Frodo diz “Mas eu tenho tão pouco dessas coisas!...] Você é sábio e poderoso. Você não tomará o Anel?”

 “Não!” gritou Gandalf, saltando aos seus pés. “Com esse poder eu teria um poder demasiado grande e terrível. E sobre mim o Anel ganharia um poder ainda maior e mais fatal.” Seus olhos brilhavam e sua face estava como que iluminada por um fogo interior. “Não me tente! Pois eu não quero me tornar como o próprio Senhor Sombrio. Contudo o caminho do Anel ao meu coração é por pena, por pena da fraqueza e pelo desejo de força para fazer o bem. Não me tente! Eu não ouso tomá-lo, nem mesmo para mantê-lo seguro, sem uso. O anseio de manejá-lo seria grande demais para a minha força. Eu precisarei tanto dele. Grandes perigos estão diante de mim.”



  No primeiro parágrafo, Frodo oferece o Anel e Gandalf reage muito desproporcionalmente. O que Frodo, sentado, oferece em uma frase, Gandalf rejeita em um monólogo, levantando súbito e animoso. Gandalf nega a oferta e, como que falando a si mesmo, faz uma autoanálise. Primeiro pensa sobre o próprio poder. Perceba que nessas duas frases após Gandalf se levantar ele fala de poder em três camadas diferentes: O Anel é poder ("com esse poder eu teria…"); O Anel dá poder ("...eu teria um poder..."); E o Anel ganha poder ("(...) o Anel ganharia um poder ainda maior e mais fatal."). 

Se olharmos mais de perto, veremos que "meu poder seria demasiado grande e terrível" indica que ninguém deveria ter tamanho poder – é poder demais. Não só isso, mas quando o Anel dá poder ao usuário, ele, ao mesmo tempo, ganha poder – e Gandalf teme o quão perigoso isso seria. O Anel é um parasita que dá força somente para ganhar força — dá poder somente para ganhar mãos pelas quais usá-lo e destruir o mundo, ou seja, quem usá-lo terá sido, ele mesmo, usado pelo inimigo. Temos um paralelismo: se por um lado o poder de Gandalf seria grande e terrível, o do Anel seria ainda maior e fatal


 Gandalf já está suficientemente justificado em sua recusa, mas ele continua. Não consegue só rejeitar e mudar de assunto; ele continua considerando a questão. "Não me tente!" Perceba que a princípio Gandalf respondeu “não” à oferta de Frodo, mas agora ele fala em termos de tentação. Como vimos nessa análise, Tolkien apresenta as tentações como sendo conflitos de vontade, da vontade correta com a errada, que é sugerida pelo mal. E é justamente analisando esse conflito de vontades que Gandalf continua a conversa: ele diz o que não quer, e o que quer.

 Por um lado, ele abomina Sauron. Mas, por outro, o Anel oferece o poder necessário para realizar a vontade boa de Gandalf, a vontade de ajudar os oprimidos. A questão é que o problema está precisamente aí: O poder de realizar a própria vontade sem restrições é em si a raiz da tirania, mesmo se a própria vontade for de fazer o bem. De novo, o Anel só dá para ganhar, usá-lo é se tornar mal como seu criador. 

 "Eu não quero (...) Contudo, o caminho do Anel ao meu coração…" Perceba o contudo; Gandalf sabe que mesmo não querendo se tornar um Senhor, ainda que levado por uma boa motivação, acabaria inevitavelmente tomando essa posição, sob a prerrogativa de assegurar força ao oprimido. Gandalf enfatiza esse desejo bom: é pena, pena mesmo, e desejo de fazer o bem. Ele vislumbra a possibilidade de fazer o bem, mas abruptamente grita de novo. Dá a entender que com poder suficiente até essa bondade o tornaria um tirano. A arma do inimigo não tem redenção, nem por motivos bons: ela é só má.


 Ele continua com um segundo “não me tente”, agora falando sobre a possibilidade de guardar o Anel sem usá-lo. Ele nitidamente está tendo uma conversa interior, primeiro respondeu “e se eu usasse para o bem?” e agora responde “e se eu o proteger para que ninguém use?” Ele diz que não ousa pegar, explica seu medo, e dá o motivo do seu medo.

 Sua explicação é de que ele teme o seu próprio desejo de usá-lo. Temos uma metáfora discreta: o seu desejo será como um peso esmagador, sob o qual ele vai se encontrar sem forças. Por que será tão pesada a tentação? Pois ele sabe que no caminho dessa jornada terá muita necessidade de poder, dados os grandes perigos que estão adiante. Quem lançaria fora o Anel capaz de te livrar da queda no abismo com um Balrog? Mas Gandalf prefere enfrentar sozinho o desespero do que ter esperança no Anel maldito — prefere submergir na profundeza do mar (na verdade, da montanha) com uma pedra de moinho amarrada ao pescoço (na verdade, um Balrog) do que fazer tropeçar um destes pequeninos (na verdade, do que escravizar estes pequeninos, e se tornar um Senhor ilegítimo).

 Ao ver de perto esta cena, vemos um Gandalf que abre mão, que prefere o sacrifício do que usar a arma do Mal. Em O Senhor dos Anéis, a sabedoria do sábio não é saber como atacar, mas como não atacar, afinal, segundo o raciocínio que acabamos de acompanhar, usar a arma do Mal, ainda que contra o Mal, é se tornar maligno.



As armas são do outro time


Isso é algo que pode passar batido, apesar da quantidade de vezes que é citado: não existe a possibilidade de se usar o Anel contra Sauron, pois foi ele que o criou. Em certo sentido, até mesmo vencer a guerra seria uma derrota, pois quem inventou o conflito foi o Senhor Sombrio, pai da morte, do roubo e da destruição. Quem mata o tirano se assenta em seu trono e continua o legado. 

Por isso, lutar não é a estratégia escolhida pela Sociedade. A sabedoria do Concílio aponta que a vitória não estará em ser mais forte do que o inimigo, mas em confundir o inimigo com o sacrifício, bem da maneira que Gandalf demonstra. Sendo mais claro, no Concílio aprendemos que o inimigo mede todos os envolvidos na guerra, porém ele só conhece “a medida do desejo por poder”— esse é o critério que ele usa para interpretar os corações. Justamente por isso a ideia de se sacrificar, de abrir mão da Arma de poder absoluto, nunca passaria pela cabeça de Sauron e, assim, ele não seria capaz de detê-los. Portanto, não é com uma força maior que ele será vencido, pois ele conhece a batalha muito bem; antes, é com o sacrifício, que não tem lugar na sua cosmovisão, que ele será confundido e derrotado. O mito da saga é loucura para o Senhor da era: Os heróis têm em suas mãos a maior arma do mundo, mas ao invés de usá-la contra o seu maligno criador, preferem ir desarmados até seu esconderijo a fim de sacrificá-la para sempre.


Fazendo um aceno para outros momentos da saga, podemos nos lembrar de como Galadriel também recusa o Anel, pois prevê que ao derrotar o Senhor ela mesma se tornará uma Rainha — basicamente a mesma visão de Gandalf, que já analisamos, — e como Saruman e Boromir, que se interessam em fazer uso do Anel, tomam um discurso abertamente autoritário, tirânico, e, apesar de negarem, maligno.



Sabedoria Cristã


 O mais interessante disso tudo é o modo como isso encarna uma forma cristã de ver o mundo. Essa sabedoria do sacrifício é a sabedoria que Jesus Cristo é. O grande ponto é que não se combate fogo com fogo: Frodo tinha a arma e não usou; Cristo foi acusado, e se calou. 

Satanás, o Senhor Sombrio do nosso mundo, quer condenar o povo escolhido por Cristo Jesus— sua arma não é um Anel, mas a acusação de uma Lei justa. A ironia é que de todos os seres no universo, ele mesmo é o pior; esse acusador é quem tem a maior culpa no cartório. No entanto, sendo um sábio maior que Gandalf e um humilde servo do Bem mais fiel que Frodo, o real Jesus abriu mão de uma arma maior também— o Seu direito. O que quero dizer é que quando a acusação foi feita contra Seu povo, Ele podia ter, por Sua vez, acusado o Diabo, que é tão mais culpado; quando foi tentado por Satanás no deserto, sendo questionado se realmente era o Filho de Deus, Ele podia ter declarado que sim; quando foi zombado, pendurado na Cruz, Ele podia ter convocado miríades de anjos para destruir os injustos; mas não fez nada disso— Ele também não quer ser como Sauron. Assim, para espanto de Satanás, Jesus Cristo abriu mão do Seu direito de acusar e, em silêncio, tomou sobre Si mesmo todas as acusações. Não questionou. Mesmo diante do rugido desse Leão infernal, Cristo foi como ovelha muda. Desse modo, o Senhor Jesus não destruiu o diabo para se tornar um novo Senhor Sombrio; Ele triunfou sobre o Mal na cruz, no sacrifício; não questionou as acusações, antes, esgotou-as para sempre conforme esgotava o Seu próprio sangue cumprindo a pena. Satanás foi confundido, perdeu seu império de morte. Este Senhor Sombrio também não tinha medidas suficientes para imaginar um Sacrifício Divino. A Sabedoria de Deus, que também foi encontrada no Concílio de Elrond, é loucura para todos os Senhores Sombrios.


Por fim, uma curiosidade interessantíssima é que o Sauron da saga foi derrotado especificamente no dia “décimo-quarto do Ano Novo ou, se preferir, o oitavo dia de abril na contagem do Condado. Mas em Gondor o Ano Novo agora sempre começará no vigésimo-quinto dia de Março, quando Sauron caiu (...)”— deixei em itálico, primeiro, a data da Páscoa no Antigo Testamento, e, depois, a data histórica da morte de Cristo Jesus. De fato, o verdadeiro Bem carrega o fardo até o esconderijo do mal, desarmado, tanto no fantástico mito de Tolkien, quanto no bendito evangelho que o inspirou.



“E quando vocês estavam mortos nos seus pecados e na incircuncisão da carne, ele lhes deu vida juntamente com Cristo, perdoando todos os nossos pecados. Cancelando o escrito de dívida que era contra nós e que constava de ordenanças, o qual nos era prejudicial, removeu-o inteiramente, cravando-o na cruz. E, despojando os principados e as potestades [o que inclui, é claro, o Senhor Sombrio], publicamente os expôs ao desprezo, triunfando sobre eles na cruz.

Colossenses 2:13-15








Ícone do anel, com pequenas modificações, retirado de:

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