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2 Pontos das 95 Teses | Fé e Sofrimento


2 Pontos das 95 Teses

"Seja considerado tolo
 Todo aquele que disser
 "Paz, Paz!" 
 Sem que haja paz.

 Seja considerado Justo
 Todo aquele que disser
 "Cruz, Cruz!"
 Sem que haja cruz."
 ~ Tese 95, João Manô


 Essas duas estrofes do hino "Tese 95", de João Manô, são retiradas diretamente das 95 teses de Martinho Lutero. Especificamente, a primeira estrofe citada é a tese 92 e a segunda estrofe é a tese 93. Quando descobri isso achei incrível, pois enriquece muito a música, e por isso pretendo trazer a nossa atenção a essas duas teses e extrair delas o cerne das questões que Lutero tratou ao protestar contra a teologia da Igreja Católica Romana, a saber, a validade das indulgências e o sofrimento cristão. 

    Tese 92 - Conforto infundado

 Vamos começar com a tese 92:

    "Fora, pois, com todos estes profetas que dizem ao povo de Cristo: Paz! Paz! e não há Paz."¹

 Se você tem alguma noção do contexto da época da Reforma, você provavelmente já entendeu o ponto desse trecho: Naquele tempo a Igreja havia iniciado uma forte campanha de venda de indulgências. Essas indulgências são "uma remissão da punição temporal dos pecados cuja culpa já foi perdoada".² Em outras palavras, são certificados que garantem que a alma de quem compra passará menos tempo sendo punida por Deus no purgatório. 

 Dessa forma, podemos falar poeticamente que a Igreja estava dizendo "Paz!" aos pecadores por meio de algo comprado. A base da sua tranquilidade era algo que tinha sido feito, uma obra. O problema que Lutero levantou foi de que essa "Paz" adquirida por meio das obras não é paz nenhuma, pois não é sustentada na Palavra de Deus.

 Além disso, há ainda mais uma camada de profundidade aqui: Lutero com essa frase da tese 92 está fazendo alusão a Jeremias 8:11. Veja você mesmo o texto em seu contexto:

     "Os sábios serão envergonhados; ficarão amedrontados e serão pegos na armadilha. Visto que rejeitaram a palavra do Senhor, que sabedoria é essa que eles têm? Por isso, entregarei as suas mulheres a outros homens, e darei os seus campos a outros proprietários. Desde o menor até o maior, todos são gananciosos; tanto os sacerdotes como os profetas, todos praticam a falsidade. Eles tratam da ferida do meu povo como se ela não fosse grave. ‘Paz, paz’, dizem, quando não há paz alguma."

Jeremias 8:9-11 NVI

 Aqui, Deus revela por meio de Jeremias a Sua insatisfação e ira contra os falsos profetas, que em vez de chamar o povo ao arrependimento estavam dizendo que Israel estava "em paz". Deus prometeu castigar Seu povo por isso, pois a sua paz em pecado era odiosa. 

 E é a esse contexto que Lutero faz referência na tese 92. A Igreja Romana parecia estar na mesmíssima situação do povo judeu condenado ao exílio: oferecendo um meio simples e impessoal de assegurar a própria paz com Deus, nesse caso garantindo um "livramento da punição". 

 Diante de tudo isso, podemos ver o primeiro grande problema que estava sendo combatido nas 95 teses: O povo de Cristo estava colocando a esperança de ser livrado da punição dos seus pecados em obras cuja validade não é baseada na Escritura. Os "profetas" estavam dizendo "Paz!" e o povo confiava em suas palavras vãs. Se cabe uma ilustração, o povo construía com palha uma casa para se abrigar do fogo do castigo divino, e Lutero se levantou para denunciar a loucura dessa tentativa. 

    Tese 93 - Bem-aventurada esperança

 Passando agora à Tese 93, temos:

    "Abençoados sejam, porém, todos os profetas que dizem à grei de Cristo: Cruz! Cruz! e não há cruz."

 É bastante nítido que Lutero fez um jogo com as palavras e inverteu a tese anterior. Mas o "sem que haja cruz" pode parecer estranho, e por isso acho importante dar um passo para trás e ver o outro ponto que ele estava fazendo aqui.

 Por um lado, as indulgências eram uma forma de evitar o sofrimento, presente e futuro, e estão equivocadas por serem infundadas. Mas não é somente esse o ponto que o reformador quer fazer: ele também quer recuperar um aspecto negligenciado do Evangelho, de que o cristão irá sofrer. O sofrimento, para quem confia em Jesus, não é um sinal do desfavor de Deus, antes é um meio que Deus usa com muito zelo para moldar Seus filhos na vida aqui. 

 Eu digo isso com base no conjunto das 95 teses, e especialmente nas teses 94 e 95. Nelas é dito que os cristãos devem ser ensinados a se empenharem "em seguir sua Cabeça Cristo através do padecimento" e que "esperem mais entrar no Reino dos céus através de muitas tribulações do que facilitados diante de consolações infundadas." Em outras palavras, Lutero está dizendo que não devemos fugir do sofrimento, mas sim confiar em Cristo Jesus nosso Salvador e sermos fiéis mesmo enquanto sofremos. Assim, o principal esforço não deve ser para fugir do sofrimento, mas para permanecer fiel ao Senhor durante o sofrimento.

 Isso é uma verdade claramente ensinada no Novo Testamento, e creio que é por isso que Lutero quer enfatizá-la. Cito uma passagem relacionada, na carta de Paulo aos romanos, capítulo 8:

    "Se somos filhos, então somos herdeiros; herdeiros de Deus e co-herdeiros com Cristo, se de fato participamos dos seus sofrimentos, para que também participemos da sua glória."

Romanos 8:17 NVI

 O plano de Deus inclui algum sofrimento na vida dos Seus filhos, em união com Cristo, antes de sermos todos recebidos na Nova Jerusalém em glória, em união com Cristo. 

 Com isso, a visão de Lutero sobre o sofrimento foi apresentada, mas é melhor voltarmos à Tese 93. Por que "sem que haja cruz"? Diante do que vimos, creio que aqui ele esteja dizendo Cruz no sentido de todo o sofrimento cristão (como Jesus faz quando diz aos discípulos que terão de negar a si mesmos e tomar a cruz, Mt 16:24). E penso que o "sem que haja" indica a ausência de sofrimentos no presente. Reformulando a frase para ficar mais explícita, seria:

    "Abençoados sejam, porém, todos os profetas que dizem à grei de Cristo: O cristão sofre! O cristão sofre! Mesmo quando os cristãos não estão sofrendo."


 Dessa forma, as 95 teses de Lutero são preciosas em nos lembrar da mensagem maravilhosa do Evangelho: Não devemos buscar consolação nas nossas próprias obras, nem mesmo se forem assinadas pelo Papa; antes, nosso firme fundamento é o que Cristo fez por nós, uma salvação completa e suficiente. Nossa justificação e paz são pela fé no Senhor Jesus, conforme a Palavra do Senhor garante. E, assim, devemos estar preparados para enfrentar o sofrimento e permanecermos fiéis e esperançosos nEle, pois Ele nos guia e conhece a dor do Seu povo, e faz com que todas as coisas cooperem para nosso bem, inclusive o sofrimento.

 Glória ao nosso bendito Deus Triuno que salva, assegura, e dá fé! 

 



 Notas:

 ¹ Tradução retirada de:

http://www.monergismo.com/textos/credos/lutero_teses.htm

 ² Definição Católica Romana, retirada de:

https://www.newadvent.org/cathen/07783a.htm

 ³ Um bom vídeo para seguir na apreensão da teologia de Lutero é esse aqui, sobre a teologia da cruz:

https://www.youtube.com/watch?v=THCixjt4jGM


 



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