Introdução
Alguns dias atrás terminei de ler A Sociedade do Anel, e pra mim foi muito bonito e edificante seguir o desenvolvimento de alguns temas do livro para aprender o que Tolkien pode nos ensinar sobre eles. Especialmente aqui eu quero apresentar a minha análise do tema "tentação", ou seja, vou fazer algumas observações sobre as vezes que Frodo é tentado a usar o Anel. Algo importante a se atentar é que enquanto para Gandalf, Galadriel e Boromir o Anel é uma tentação de poder absoluto, com Frodo não é assim. A tentação de Frodo é só desaparecer, e por isso talvez seja mais próxima de nós, se aprendemos algo do que acontece com ele.
Antes de qualquer coisa, acho que é melhor começar observando o modo que a tentação em geral é introduzida no livro. Isso acontece com Bilbo no primeiro capítulo, enquanto ele conversa com Gandalf. Bilbo é confrontado a deixar o Anel, e por isso age de modo obsessivo e nervoso. "É meu, eu te digo. É meu mesmo. Meu precioso." Assim Tolkien nos mostra alguém que é devorado pelo Anel, e o próprio Bilbo, depois de ser reprovado por Gandalf, confessa que "o anel crescia na sua mente" e que por isso "será um alívio não se preocupar mais com ele." Aqui não há tentação de usar o Anel, mas já vemos a sua influência opressiva sobre quem o porta. Essa opressão virá sobre Frodo, e o veremos no suspense entre se sujeitar ou não a esse mal.
Capítulo 3, a primeira ocasião
Eu penso que não é necessário resumir a história, porque acho que todos que lerem esse texto já leram O Senhor dos Anéis (aliás, aqui há spoilers do livro todo). Mas de qualquer modo, Bilbo deixou o Anel para Frodo, e Gandalf deu a ele instruções de como prosseguir a viagem rumo a destruição do Anel. A próxima vez que nosso tema é tratado no livro é no capítulo 3. Enquanto os Hobbits estavam na estrada, um cavaleiro negro se aproximou deles, que por isso se esconderam.
E é justamente nessa situação que Frodo é tentado a pôr o Anel. A tentação é descrita assim: repentinamente ele se enche de um medo irracional de ser descoberto, e por isso pensa no Anel. O narrador destaca a importância do Anel na mente de Frodo: é dito que ele “não arriscava sequer respirar, e o desejo de tirá-lo do bolso se tornou tão forte que ele começou lentamente a mover sua mão. Ele sentia que devia só colocá-lo e seria seguro.” Perceba como o narrador nos mostra o interior de Frodo, descobrindo seus pensamentos. O Anel cresce na sua mente, como acontecia com Bilbo, e se torna mais importante que respirar. Nesse parágrafo não há nenhuma ação, só o processo mental de Frodo. Primeiro, o medo, depois o movimento da mão, depois uma breve racionalização que tenta se permitir a pecar (é dito que ele pensou que “o conselho de Gandalf é absurdo”, e que ele “ainda estava no Condado, então nada de mau aconteceria”). Ao final, o cavaleiro negro se vai, e por isso Frodo é salvo logo antes de se render.
Agora, vejamos um pouco o que aprendemos sobre tentações aqui. A coisa mais importante, que depois será presente em todas as vezes que formos apresentados a essas situações, é o caráter irracional da tentação. Não é pela razão que ele quer pecar. Por isso há aqui também a tentativa de justificar o pecado; ele tenta encontrar argumentos racionais para a sua vontade irracional. “Bilbo está seguro, mesmo tendo usado o Anel algumas vezes, e eu ainda estou no Condado, então…”. Não é justamente assim que as tentações se apresentam a nós? Tudo que há de feio sobre o que queremos fazer é deixado de lado, como se não tivesse importância. No momento da tentação, enquanto estamos tensos, nada parece mais urgente que pecar, e por isso desprezamos os motivos que nos mostram que isso é errado.
Capítulo 8, negando-se a si mesmo
Vamos partir agora ao capítulo 8. Frodo, Sam, Merry e Pippin continuaram a sua viagem, até serem capturados por um tipo de fantasma, que os aprisiona enquanto estão inconscientes. Alí, o primeiro a acordar é Frodo. A tentação aqui é só mencionada, mas vejamos como é narrada a cena:
Frodo se sente meio morto, e depois um "wild thought of scape came to him". Um pensamento de escapar selvagem vem a ele. Ele pensa se pondo o Anel talvez não conseguiria fugir, e então correr livre no campo, sofrendo por Merry, Sam e Pippin– mas livre e vivo. Vejam que ele se torna, por um segundo, totalmente egoísta. Mas é justamente por fidelidade a seus amigos que ele se enche de coragem e luta contra si mesmo para não se render, antes defender seus companheiros, e assim ataca o fantasma e chama ajuda.
Com essa narração, nós somos apresentados a um outro aspecto de tentação, e assim também à força capaz de vencê-la. Conhecemos aqui o egoísmo da tentação, que faz esquecer não só os conselhos (como vimos no capítulo 3), mas até as pessoas caras a nós, que, se nos permitimos pecar, podem ser ameaçadas. O narrador muitas vezes nos lembrará de tudo que Frodo (e você) esquece enquanto é tentado. Um ato egoísta pode ter consequências que atingem não só nós mesmos mas também a quem amamos. Mas não é só isso que vemos aqui, vemos também como Frodo não se rende à tentação, e vence. Ele luta consigo mesmo, por amor aos seus amigos. Fica claro que o único modo de não pecar é mortificar a tentação, lutar contra nossos desejos irracionais– e a motivação pra isso é encontrada somente fora de nós mesmos, olhando outros.
Capítulo 9, “Mas não fui eu que fiz isso que eu fiz.”
Mais tarde, no capítulo 9, depois dos Hobbits serem salvos e chegarem à taverna onde encontram Passolargo, uma brevíssima situação onde Frodo chega a usar o Anel acontece.
Não há sequer tentação, mas Frodo se sente bobo na taverna, e pensa no Anel. O que acontece é o mais surpreendente aqui, e de agora em diante será sempre mencionado nas tentações: para Frodo, a ideia de pôr o Anel parece ter sido sugerida por alguém na sala. Também é dito que, depois de usar o Anel e cair no chão, Frodo sentia como se o próprio Anel tivesse pregado uma peça nele, se revelando a alguém ali.
Cito essa pequena passagem porque esse sugerir do pecado por parte de alguma influência externa a Frodo é um desenvolvimento importante. Em um certo sentido, Frodo realmente quer o Anel; em outro, ele não quer, mas um certo desejo foi plantado nele por alguém. Essa tensão do ser tentado deve ser mantida em mente.
Capítulo 11 e 12, “Quero mas não sou eu que quero”
Enfim chegamos ao capítulo 11, onde acontece a tentação mais relevante até aqui. Frodo, Sam, Merry, Pippin e Passolargo continuam a aventura, mas precisam parar durante a noite. E ali, no escuro, os cavaleiros negros vêm atacar o grupo e roubar o Anel.
Tento traduzir todo o parágrafo da tentação:
“O terror venceu Pippin e Merry, e eles se jogaram ao chão. Sam se pôs ao lado de Frodo. Frodo não estava menos aterrorizado que seus companheiros, mas seu terror foi tragado por uma tentação repentina de pôr o Anel. O desejo de fazer isso se apossou dele, e ele não podia pensar em mais nada. Ele não tinha esquecido o Barrow [o fantasma do capítulo 8], nem a mensagem de Gandalf, mas algo parecia estar obrigando-lhe a ignorar todos avisos, e ele ansiava por se render. Não com esperança de escapar, nem de fazer nada, bom ou mau: ele simplesmente sentia que devia pegar o Anel e pô-lo em seu dedo. Ele não conseguia falar. (...)”
Que narração de tirar o folêgo! “Ele, ele, ele…”, estamos com ambos olhos fixados em Frodo. Cada frase merece nossa atenção. “Não conseguia pensar em mais nada”, o Anel cresceu tanto na sua mente que a tem por inteiro. Ele não tinha esquecido todo o risco disso, mas o ignorava; irracional, ignorando a razão. Ansiava por se render: O pecado parecia a coisa mais desejável de todas, ele queria de todo coração pôr o Anel. Veja: “Não com esperança, nem querendo fazer nada, somente porque sentia que devia.” Essa é a anatomia da mente tentada.
Por que narrar com tantos detalhes essa cena? Talvez para nos ensinar algo sobre o que acontece conosco enquanto somos tentados. A tentação é realmente irracional: Não queremos pecar porque cremos que o pecado é bom, mas ativamente ignoramos tudo de racional que condena o pecado em nós, e simplesmente queremos pecar. Ou seja, como é narrado acerca de Frodo, na verdade não esquecemos o que aconteceu no passado, nem temos qualquer esperança de um futuro melhor depois, simplesmente estamos por um momento fechados em uma situação que parece mais urgente que tudo no mundo. É um problema de vontade mais que de conhecimento. Somos tentados quando o conhecimento justamente condena aquilo que a vontade deseja. Como vimos acontecer com Bilbo e agora com Frodo, o pecado cresce tão extraordinariamente na nossa cabeça que não conseguimos pensar em mais nada– essa parece a coisa mais satisfatória do mundo, preciosa. Parece um dever, mesmo se sabemos que é uma transgressão. Essa tensão que nos abate poderia ser comunicada só em uma história, e só assim nos ensina isso: você ignora tudo enquanto é tentado, então esteja alerta. Você se arrependerá. E é justamente esse arrependimento que veremos agora, no próximo capítulo.
Pouco tempo depois, no capítulo 12, Frodo reflete sobre sua experiência. Como vocês sabem, ele acaba usando o Anel, e por isso é golpeado por um dos cavaleiros negros. O que ele pensa é breve, mas claro:
Ele tem duas reações a uma conclusão a que chega enquanto pensa no que lhe ocorreu. Está escrito que ele se arrepende amargamente, porque foi um tolo, e se repreende a si mesmo por ser tão fraco de vontade. Tudo por isso: “porque agora percebia que ao usar o Anel não estava obedecendo seu próprio desejo, mas o comando dos seus inimigos.” Ele se repreende a si mesmo, porque ao pôr o anel ele não foi capaz de ver o que ele realmente queria e o que era somente a tentação inimiga.
Essa realização, que na tentação a nossa verdadeira vontade é misturada com a vontade do inimigo, de modo que por pouco não sabemos o que queremos ou não, é muito interessante. Nos traz à mente o capítulo 6 da carta de Paulo aos romanos, que Tolkien conhecia muito bem por ser cristão. Ali Paulo diz: “Não reine, portanto, o pecado em vosso corpo mortal, para lhe obedecerdes em suas concupiscências; Nem tampouco apresenteis os vossos membros ao pecado por instrumentos de iniquidade”. Paulo nos apresenta a natureza pecaminosa como um rei que vive dentro de nós, que influencia a nossa vontade a fim de obedecer-lhe. Mas o nosso dever é viver como mortos ao pecado, e vivos a Deus. É isso que Frodo percebe na sua situação: A sua vontade foi influenciada para obedecer o inimigo, e depois de obedecer ele se arrepende e se repreende. Assim, no pecar não somos livres a fazer nossa vontade, mas somos na verdade escravos do mal, que distorce nossos desejos para obedecê-lo.
Último capítulo, desesperado, mas com esperança
Finalmente, chegamos ao último capítulo, o capítulo 10 do segundo livro. Muito ocorreu, e Frodo agora deve escolher como prosseguir a viagem. Mas ele é ameaçado por Boromir, e por isso põe o Anel e sobe em uma montanha, onde somos apresentados à seguinte cena:
Enquanto ele usa o Anel, sente como se o Olho de Sauron estivesse procurando-o, e isso é narrado:
“(...) ele se jogou da cadeira, se agachando, se cobrindo com seu capuz cinza.
Ele se ouvia gritar: Nunca, Nunca! ou era: Em verdade, eu irei, eu irei a ti? Ele não conseguia saber. Depois como um raio de algum outro ponto de poder veio à sua mente um outro pensamento: Tire-o! Tire-o! Tolo, tire-o! Tire o Anel!
Os dois poderes lutaram dentro dele. Por um momento, perfeitamente balanceado entre a perfuração dos dois, ele se contorcia, atormentado. Repentinamente ele estava consciente de si mesmo de novo, Frodo, nem a Voz nem o Olho: livre para escolher, e com só um instante para fazê-lo. Ele tirou o Anel de seu dedo.”
Que cena! Aqui o “ser influenciado na tentação” é muito mais opressivo. Ele não sabe mais nada, nem sequer o que diz, e o narrador destaca essa loucura. Nos é apresentada uma pessoa desesperada, agachada no chão. Veja que o Olho, maligno, ele sente, sem ver nem escutar, enquanto a Voz ele escuta comandando-o a resistir à tentação. Agora somos remetidos ao capítulo 7 da carta aos romanos, onde Paulo escreve “Porque nem mesmo compreendo o meu próprio modo de agir, pois não faço o que prefiro, e sim o que detesto. (...) Então, ao querer fazer o bem, encontro a lei de que o mal reside em mim. Porque, no tocante ao homem interior, tenho prazer na lei de Deus; mas vejo, nos meus membros, outra lei que, guerreando contra a lei da minha mente, me faz prisioneiro da lei do pecado que está nos meus membros.” Duas leis, uma boa e uma má. Uma na mente e outra na vontade. Um combate constante. Mas dentro desse combate está Frodo, que deve escolher. Ele é atormentado pelo ponto que chegou a influência maligna, mas ainda assim, ele é livre para escolher, e com um instante para fazê-lo. E assim, de fato, somos nós: Enquanto somos tentados, com a mente cheia da irracionalidade que o pecado nos apresenta, enquanto não sabemos muito bem o que queremos e o que não queremos, enquanto dois poderes combatem em nós– devemos escolher. Como vimos nos capítulos anteriores, o único modo de vencer a tentação é lutar contra si mesmo, por fidelidade a alguém. O Frodo de Tolkien escolheu tirar o Anel, sendo fiel à Voz que fala diretamente a ele. Nós, segundo Paulo, devemos mortificar os desejos do pecado, e sermos fiéis ao Deus que nos salva em Cristo Jesus.
Conclusão
Diante de tudo isso, o que você pensa? Sabe de alguma coisa a mais do desenvolvimento desse tema no livro? Gostaria de saber as suas ideias, não só sobre esse tema, mas também sobre os outros que você achar interessante compartilhar. Há o tema do poder absoluto, das memórias imortais em Lórien, das canções heróicas do passado, e tantos outros, é um texto realmente rico! Aguardo os seus comentários para continuarmos a conversa.
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