O Sol correndo pelo céu é como um noivo percorrendo a terra. O casamento de um homem e uma mulher é símbolo da união entre Cristo e a igreja. O Senhor é rocha, fortaleza, libertador, rochedo, refúgio, escudo, salvação. Quando perguntaram ao Senhor quem era o “próximo”, Ele contou uma história. Nós somos feitos de maneira que conseguimos conhecer o mundo, os outros, nós mesmos e Deus através de histórias. O meu propósito nesse texto é esboçar algumas formas em que tenho sido edificado através da interação com a cultura (especialmente a literatura).
Em outro texto, a literatura é meio de amar mais o próximo como a si mesmo. Aqui, como meio de amar mais a Deus acima de todas as coisas; especificamente, meio de amar mais Jesus.
Na Bíblia: Amando o Rei que vem
Podemos ver a base dessa lógica na própria Escritura. O livro de Cântico dos Cânticos nos mostra a riqueza do amor humano para dar ainda mais peso ao amor de Cristo (Ef 5:32; Ct 8:14, Ap 22:20); o livro de Juízes mostra a tragédia de uma nação sem liderança para fazer clamar por um Rei sábio e justo (Jz 17:6); e assim em todos os livros: na história de Moisés ficamos esperando um Profeta maior, na história de Sansão, um Juiz melhor; na história de Eli, de Davi, de Salomão — em tudo somos levados e elevados Àquele que é maior e melhor, que não falha nem decepciona: o Cristo prometido. Ou seja, em todas as histórias da Bíblia, por contraste (como em Juízes) e por semelhança (como na história de José e de Boaz), nossa reação tem que ser amar mais Jesus.
E não só na Bíblia; acredito que (de maneira menor e não tão direta) devemos também, tanto quanto possível, amar mais Jesus por todas as histórias — pela Literatura.
Ou seja, em todas as histórias da Bíblia, por contraste (como em Juízes) e por semelhança (como na história de José e de Boaz), nossa reação tem que ser amar mais Jesus.
Amando mais Jesus através da Literatura
Na nossa interação com a cultura, muitas vezes surgem as perguntas: É pecado ouvir uma música secular? É pecado assistir essa série? É pecado ler ficção? Minha proposta é a seguinte: na nossa interação com a cultura, somos edificados ao amar mais Jesus. Assim, o pecado nessa interação está em ser levado a amar o que Jesus odeia. Vamos ver uma coisa de cada vez.
Na nossa interação com a cultura, somos edificados ao amar mais Jesus. Assim, o pecado nessa interação está em ser levado a amar o que Jesus odeia.
Um exemplo bastante simples de como lendo uma história podemos amar mais Jesus é O Pequeno Príncipe: a forma que a Raposa explica ao Pequeno Príncipe o que é estar cativado (que a faz ver o loiro dos seus cabelos nos campos de trigo) é muito esclarecedora da forma que os salmistas viam a criação, sendo sempre por ela lembrados e levados ao Criador. Assim, nessa leitura, esse trecho pode nos fazer amar mais Jesus — nos fazer apreciar um pouco mais a Ele, que nos cativou para sempre.
Um exemplo com mais nuances é o sétimo capítulo de O Vento nos Salgueiros. Nele, depois de muito vagarem pela noite atrás de um filhote perdido, Rato e Toupeira são encantados, extasiados pelo som de uma música ao longe. Ao seguirem o som, acabam encontrando, no momento exato em que alvorecia o sol, Pã, deus grego protetor dos animais, que está com o filhote são e salvo. Rato e Toupeira se prostram, mas erguendo os olhos novamente são cegados pela luz do sol despontando no horizonte, e, quando podem enxergar de novo, o deus se foi. E o narrador faz questão de registrar: Pã se foi e apagou aquele momento da memória dos dois para que nunca sofressem procurando por ele. Esse trecho me faz amar muito Jesus, por razões que já expliquei mais a fundo em outro lugar, mas uma delas é que Jesus, além de ser mais encantador e doce do que Pã, não é mesquinho. Enquanto Pã ajuda uma vez e desaparece para sempre, o Senhor Jesus se dispõe a viver para sempre com o povo que salvou. Pã se empresta, Jesus se dá.
Ainda outra nuance para nosso entendimento da edificação através da cultura pode ser vista aqui: Simplesmente o fato de envolver deuses estranhos e falsos não impossibilita uma história de ser edificante. O próprio apóstolo Paulo usa um verso grego sobre Zeus para falar aos gregos sobre o Deus verdadeiro. O que acontece é que a cultura pode nos fazer amar mais Jesus tanto por semelhança quanto por contraste — amamos mais Jesus diante do amor genuíno entre um homem e uma mulher, como o Seu para a igreja, também diante de um sacrifício nobre, vislumbre do Seu todo-poderoso sacrifício de amor; e amamos mais Jesus também quando vemos que Ele é melhor que deuses gregos, e, até mesmo, quando sofremos com as tristezas desse mundo aqui e portanto somos levados a ver nEle a esperança de julgar e redimir essa terra.
De fato, penso em O Morro dos Ventos Uivantes como exemplo dessa edificação por contraste. Nunca mais esqueci a cena em que Linton chora fingindo sorrir, olhando para trás para ver se o pai não está vigiando. Que sofrimento, que escravidão! Amo muito mais Jesus quando tenho o coração cortado por esse sofrimento do garoto, porque Ele vai julgar todos Heathcliffs por cada segundo que torturaram emocionalmente os seus dependentes; Ele há de vir a julgar os vivos e os mortos. Amo mais Jesus porque Ele não vai deixar esse tipo de coisa passar batido. Nenhuma lágrima terá sido derramada em vão, nem um só minuto de sofrimento deixará de ser especificamente feito justiça. A Literatura, portanto, também me faz conhecer realidades que estão fora do meu campo de visão no dia a dia, de modo que eu passo a conhecer melhor o tipo de mundo que Cristo veio salvar.
Os exemplos poderiam ser inúmeros e variados: em O Triste Fim de Policarpo Quaresma, por exemplo, me faz amar mais Jesus porque Ele não é uma esperança vã.¹ Em Olhai os Lírios do Campo, amo mais Jesus vendo a tristeza dos relacionamentos quebrados desse mundo e apreciando o amor resoluto dEle, que não deixa as coisas mal-entendidas; em o Senhor dos Anéis, amo mais Jesus pela sabedoria de Gandalf, pela miséria de Gollum (que me ensina o tipo de amor que o meu Senhor tem: misericórdia de criaturas miseráveis), pelo lindo retorno do rei. Não só na Literatura: amo mais Jesus pela tragédia de Jandira na novela Topíssima,² amo mais Jesus pelas saudades e inseguranças da série Monk, amo mais Jesus pela grandiosidade dramática da História representada na Abertura Trágica de Flávio Regis Cunha.³ Em toda produção cultural legítima, posso ser levado a amar mais meu Senhor Jesus.
Retomando, então, o pecado na relação com a cultura está em quando o contrário disso acontece: quando, em vez de amar mais Jesus, minha interação faz com que eu O ame menos. Quando acompanhando os personagens de uma série acabo amando o adultério que eles cometem como ápice de seu “amor”, e assim passo a ver menos beleza na santidade da visão que Jesus tem do amor e do casamento. Quando amo a mentira de um personagem, e portanto passo a duvidar da justiça das afirmações categoricamente taxativas do Cristo. Assim, o problema está em amar mais o que Jesus odeia; ao contrário de amar Jesus por contraste, amar aquilo com que Jesus contrasta.
Conclusão
Resumindo, a edificação literária que eu tenho encontrado acontece quando diante das cenas nos deixamos ser afetados, e levamos a nossa reação a elas até o fim, enquanto cristãos. Em outras palavras, somos edificados quando nossa resposta é amar mais Jesus: diante de uma cena de genuíno amor, somos movidos pela beleza do amor e, assim, Cristo que é sublime amor se torna ainda mais desejável; diante de uma cena de sofrimento desolador, somos movidos pela tristeza e lamentamos a existência do mal, e, assim, Cristo que julgará o mundo em justiça se torna ainda mais desejável. A literatura é, dessa forma, um exercício das reações do nosso coração: apresenta belezas e tristezas para que nosso coração vá aprendendo a reagir a elas da forma adequada, amando e chorando, e, nisso, aprecie mais Jesus.
As histórias nos fazem amar mais Jesus quando vemos que Ele é a fonte daquelas belezas e o fim daqueles males.
O mais necessário para isso acontecer é uma disposição sincera ao ler. Um risco muito real, principalmente para jovens como eu, é estarmos prontos demais a tratar tudo como uma piada, como material para meme. Isso faz com que o coração esteja duro para sentir e de fato se exercitar, e assim se negue a sofrer os efeitos da beleza e da bondade que a história apresenta.
Nosso desejo e nossa oração, portanto, tem que ser sempre: Senhor Espírito Santo, Espírito que dá vida, faze-nos sensíveis e edifica-nos. Traze-nos para mais perto do nosso Amado.
Ele é especialista nesse tipo de coisa.
E eu, da minha parte, agradeço a Deus pelo Rato d’água e pelo Toupeira, pelo Ernesto, pelo Sam, pela Orual, e por tantos outros que me fazem amar mais Jesus.
Notas
¹ Meu último dia não será como o de Quaresma, que no final percebeu que lutou com todas as forças por uma ilusão, que sua vida se consumiu em um holocausto a nada e a ninguém. Amo mais Jesus porque diante desse arrependimento e percepção de vaidade entendo com mais doçura as últimas palavras do Policarpo de Esmirna, que preferiu a morte a negar seu Rei e Senhor que por toda sua vida só havia lhe feito bem. Amo mais Jesus porque Ele não é uma causa vã, mas é Senhor. E oro para que alcance os corações dos que ainda se iludem como o Major.
² Na novela, Jandira é coagida pelo namorado a fazer um aborto e não conta para os pais por medo de ser condenada por estar sequer grávida para início de conversa. A falta de acolhimento dos pais, a sequidão opressiva do namorado, a possibilidade sequer de se cometer uma maldade tão grave, me fazem clamar pela volta do Juiz de toda a Terra.
³ É extraordinário como uma música excelente consegue transmitir essa percepção de grandiosidade diretamente ao coração. Ouvindo, é como se a multidão das eras passasse diante dos meus olhos, e eu visse o desenvolvimento, queda e ascensão de impérios. E amo mais Jesus porque em tudo rege, soberano, intencionalmente, as ondas da História. Link.
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