Naquelas dias não havia rei em Israel; cada um fazia o que parecia bem aos seus olhos.
Juízes 21:25
O povo de Israel, escolhido por Deus, foi liberto poderosamente da escravidão no Egito, com sinais e maravilhas foi guiado e sustentado no deserto, derrotando todos inimigos até, enfim, se estabelecer na terra prometida. Mas quando se estabeleceram, mergulharam em profunda escuridão espiritual: ignorância, pecado, vaidade.
Quatro vezes nos últimos capítulos de Juízes somos lembrados: Naqueles dias não havia rei em Israel. Já não havia Moisés, Josué, ninguém. O povo era como um homem sem cabeça, sem alguém que o orientasse. A forma que o autor expressa isso é dizendo que "cada um fazia o que parecia bem aos seus olhos". Por mais que a Lei tivesse sido dada a eles, já não havia alguém com autoridade que ensinasse, nem ninguém com autoridade que aplicasse; cada um andava conforme queria, na direção que queria, e essa direção sempre seguia para longe do Deus que os havia resgatado.
A treva do povo sem rei e sem justiça é contada com mais calma nesses últimos capítulos de Juízes com uma história pesada e grave, densa como sangue.
O levita
A sua mulher tinha adulterado, mas o levita estava disposto a perdoar. Por isso, ele tomou seu servo e dois jumentos e foi até Belém, onde morava o pai da mulher, e lá a convenceu a reatar a relação. E assim começaram a viagem de volta; porém o dia foi se pondo e veio chegando a noite. O servo sugeriu que dormissem em Jebus, mas o levita não admitia passar uma noite sequer em uma cidade que não fosse de Israel. Portanto eles continuaram viagem, se esforçando para chegar em uma cidade israelita; ele se recusou a dormir no meio de gente estranha.
Foram, foram, chegaram em Gibeá, cidade de Benjamin, israelita, já de noite. Ali um certo senhor vê os viajantes, se compadece e os convida para dormir em sua casa. Eles vão, comem, bebem e se alegram, até que alguém bate à porta — são os homens da cidade que cercaram a casa: querem "conhecer" esse levita. Insistiram, até que ele entrega a mulher aos homens. Infelizmente, naquele tempo não havia rei em Israel; não sei quanto a Jebus, mas dormir em Gibeá, terra de Israel, não foi por nada diferente de dormir em Sodoma, terra de perdição — o mesmo pecado já tinha permeado aquele lugar (Gn 19:5). Isso porque no final das contas, aqueles homens a "conhecem", todos aqueles homens, a noite toda.
Pela manhã, o levita sai e encontra a mulher deitada em frente da casa. A mulher estava morta. Em Gibeá, cidade de Benjamin, não choveu fogo e enxofre, o sol brilhava lá fora. A escuridão estava mesmo era no coração dos homens, sufocando o conhecimento do Deus de Israel. Sem mais, sem o que fazer, o levita põe sua mulher já sem vida sobre um dos jumentos e segue viagem para sua casa. Não tinha rei, não tinha juiz, não tinha justiça e retidão. Chegando lá, pega um cutelo e divide o corpo: doze pedaços a serem enviados às doze tribos de Israel. Tamanha loucura de Benjamin precisava ser conhecida. Não ia ficar assim. Afinal, nunca algo semelhante havia sido visto em Israel, desde que subiram da terra do Egito. Nunca até agora, quando já não havia mais rei em Israel. Cada um fazia o que parecia bem aos seus olhos. Malditos olhos dos homens daquela cidade, cegos, perversamente cegos.
Israel contra Israel
Israel ferve com a mensagem sangrenta. Isso é inadmissível. Toda a nação, como se fosse um só homem, se junta na cidade de Mispá. O levita ali relata a abominação que aconteceu, e assim o povo se resolve: vão contra Gibeá requerir justiça das suas mãos. No entanto, Gibeá não quer entregar os homens que cometeram tamanho pecado. Pelo contrário, estão tão convictos em não ceder que todo Benjamin se junta contra seus irmãos israelitas: preferem a guerra.
Inadmissível. Israel consulta o Senhor, "Quem deve lutar primeiro contra Benjamin?" (Jz 20:18); como se dissessem, "Senhor, quem começa?", ou seja, já decidiram que iriam à guerra, ao Senhor basta decidir quem. Se é assim, o Senhor manda que vá Judá primeiro. E vai — Judá vai guerrear contra Benjamin, os pecadores. Mas num só dia, Benjamin, os pecadores, mata vinte e dois mil homens de Judá. Por isso Israel volta a consultar o Senhor, chorando, e questiona se deveria voltar a lutar contra "Benjamin, nosso irmão?" (20:23). Começaram a ver com outros olhos, já sabem que lutam contra seus próprios irmãos, reconhecem que é Deus que deveria decidir se deveriam ter sequer entrado nesse conflito. Mas agora a guerra já começou. O Senhor diz que sim, devem voltar. Dura é sua didática para um povo de coração duro e devagar. Vão à guerra, e Benjamin, seus irmãos pecadores, mais uma vez saem na frente: derrubam dezoito mil homens. Pelo que Israel se junta perante o Senhor, e chora, e jejua, e sacrifica, e questiona se ainda deve insistir na guerra contra "Benjamin, nosso irmão?" (20:28); lembraram-se do tamanho do Deus com que falam — jejuam, buscam, e agora encontram com mais clareza. O Senhor diz que sim, que lutem uma última vez. Diante disso o povo de Israel vai, novamente, e guerreia contra Benjamin, e luta e mata, e morrem de Benjamin — seus irmãos — vinte e cinco mil homens. De toda a tribo, só seiscentos homens escaparam com vida, todos os outros morreram ao fio da espada. Ah, Benjamin, Benjamin! O último dos filhos de Jacó, amado — que levou às lágrimas José, seu irmão; quanto mais não choraria ao te ver moído em sangue, reduzido a um quase nada! Moído, reduzido — pelas mãos de seus irmãos!
Lágrimas
Assim os filhos de Israel lutaram contra Benjamin, filho de Israel, e venceram. E vieram a Betel, todo o povo, tendo vencido a guerra: veio a Betel e se juntou, e chorou amargamente com grande lamento. Não se juntou em festa pela vitória na guerra; tendo passado aquele furor, agora viam com mais clareza a situação: foi horrível. Israel matou Israel. Israel arrancou de si uma tribo. A espada bebeu sangue em guerra, mas que gosto amargo — era sangue da família.
"Ah, Senhor Deus de Israel, por que aconteceu isso, que falte uma tribo em Israel?" (21:3)
Não foi para isso que Deus tirou Israel do Egito, com mão forte e braço estendido. Não foi para isso. O povo todo unido em um só propósito, com convicção e força — matar seus irmãos. O povo convicto, como se fosse um só homem — mas um homem sem cabeça, sem clareza, sem direção. Naquele tempo não havia rei em Israel; cada um fazia o que parecia bem aos seus olhos. E isso era mau — levou à morte de dezenas de milhares em guerra; dezenas de milhares de irmãos, matando uns aos outros. Essa é a humanidade quando fica abandonada. Quanta falta faz Alguém!
Que nuvem cobria esse povo ignorante, que trevas envolviam esse povo pecador, que densas trevas iludiam o povo sem rumo, sem conhecimento, sem vida!
As últimas palavras do livro, novamente, são: "Naqueles dias não havia rei em Israel; cada um fazia o que parecia bem aos seus olhos" (21:25). Quando brilharia a luz, quando viria um rei? Se seguirmos nossos olhos acabamos cortando a própria carne. Tão cegos estão nossos olhos que quando abertos, vendo com clareza, só podem chorar. Precisamos de alguém que veja melhor, que julgue melhor, que nos faça melhores. Quando virá um profeta que nos ensine a clareza da Lei; quando um Sacerdote que apague nossos pecados; quando um Rei que faça brilhar radiante a Luz da Justiça? Quando — clamamos — quando virá um Rei que faça justiça, guie, proteja, cuide do povo seu!
O Senhor enviaria um Rei a Israel.
e reinará eternamente sobre a casa de Jacó, e o seu reino não terá fim.
Lc 1:33
Ó vem, Emanuel!
Comentários
Postar um comentário