Para que serve a literatura? Para muito, em todo sentido. Mas, um sentido particular em que edifica o homem é na empatia. C. S. Lewis esboça sua teoria literária em “Um Experimento em Crítica Literária”, e é a partir das ideias dele que quero construir aqui um pequeno retrato de uma perspectiva enriquecedora da Literatura, e exemplificá-la com o livro de Jó.
A história é para mostrar, não para convencer
A forma mais fácil de justificar a literatura é alegar que ela é uma forma de ensino. Isso, no entanto, é um reducionismo: quanto apreciamos histórias que não ensinam nada novo? A arte está sempre mais próxima de um exercício do que de um aprendizado, ou, nos termos de C. S. Lewis, não é uma questão de “usar” mas de “receber”. Em outras palavras, diferente do texto argumentativo, o propósito principal do texto literário não é convencer o leitor de algo, mas simplesmente mostrar algo a ele. Citando Lewis, “Nós nos sentamos diante da imagem para que algo aconteça conosco, e não para fazer alguma coisa com ela.” Antes de ganhar ou não conhecimento a partir da arte, recebemos a arte e nos deixamos comover.
Sendo assim, Lewis é muito coerente ao dizer que a “razão de ser” das histórias não é a moral ou lição que têm a ensinar, mas sim “o que nos fará chorar, ou estremecer, ou querer saber, ou rir enquanto a estivermos lendo”, ou seja, as emoções que exercitam em nós. Não lemos “O Morro dos Ventos Uivantes” para aprender sobre o amor, mas para sentir a dor dos humilhados e desprezados, e a perturbação dos malignos, vingativos e loucos — não para aprender a ser como eles, mas para sermos movidos a ver os que são assim com a graça adequada. Ou seja, aquilo que comove em uma história não é apenas mais um meio de se conseguir ensinar algo — antes, a própria comoção interior é a justificativa da história.
Resta, então, a pergunta: vale a pena receber? Por que ver o que o autor mostra? Porque somos limitados. Nas palavras de Lewis:
“Queremos ver com outros olhos, imaginar com outras imaginações, sentir com outros corações, e com nossos próprios também. Não estamos contentes em sermos as mônadas de Leibniz. (…) Uma das coisas que sentimos depois de ler uma grande obra é “eu saí”. Ou, a partir de outro ponto de vista, “eu entrei”, perfurei a concha de alguma outra mônada e descobri como é dentro dela.”
Simplesmente recebendo temos a oportunidade de ver o mundo com olhos que não são os nossos, de “ter experiências que não são as nossas”. Concordando ou discordando do modo que o narrador interpreta a situação, podemos, ao olhá-la através das suas palavras, ver o que ele vê, entrar nele e sentir com o seu coração. E digo mais, creio que não só “queremos”, como Lewis diz, como devemos, afinal, sendo o falso testemunho proibido e o amor ao próximo exigido, quantas coisas na nossa vida são mais necessárias do que exercitar a compaixão?
Um exemplo excelente dessa perspectiva acerca da literatura é o livro de Jó. Aliás, é um exemplo de que, ao que parece, essa é parte da perspectiva de Deus.
Jó: Entrando na Mônada de um Desinformado
Jó é um livro sobre fatos reais, mas é também literatura, e a própria estrutura do livro é um argumento a favor da ideia de que o autor queria que entrássemos na mente de Jó mesmo discordando dele; ou seja, de que mais do que aprender, deveríamos nos preocupar em ver. Basicamente, a história tem dois registros: o diálogo no céu, e a situação que se segue na vida de Jó — que desconhece por completo o diálogo que foi revelado ao leitor. Assim, é relevante que o livro seja visto como o que ele realmente é: a explicação do que estava acontecendo, seguida de pessoas falando por 36 capítulos sobre o que não sabem. Perceba: essa ordem é importante. Não é um mistério; nós não vemos vários argumentos para, no fim, descobrirmos a grande verdade. É o contrário — nos contam a verdade logo no início, e então somos obrigados a ver gente tateando no escuro:
“[Prólogo:] Disse o Senhor a Satanás: Notaste porventura o meu servo Jó, que ninguém há na terra semelhante a ele, homem íntegro e reto, que teme a Deus e se desvia do mal?”
(Jó 1:8)
“[Jó:] Tudo é o mesmo, portanto digo: Ele destrói o reto e o ímpio.
(…)
Tens prazer em oprimir, em desprezar a obra das tuas mãos e favorecer o desígnio dos ímpios?
(Jó 9:22; 10:3)
“[Amigo:] (…) sabe, pois, que Deus exige de ti menos do que merece a tua iniquidade.
(Jó 11:6)
A situação de Jó está sob influências celestiais muito além do que ele sabe. Portanto, tudo o que ele pensa é inadequado. Não, o Senhor não destrói o reto e o ímpio — se Ele permitiu que Satanás afligisse Jó, foi por motivos que só se aplicam a justos. Não, o Senhor não tem prazer em oprimir nem em desprezar; pelo contrário, em honrar: a dor de Jó era meio de honra diante de toda a criação. Não! Entenderam tudo errado! Deus não está exigindo o que merece a iniquidade, pelo contrário, está fazendo brilhar a pureza da santidade de Jó. Não há, pelos trinta capítulos de diálogo entre Jó e os amigos, informações; estão todos sem respostas.
E Deus foi o autor dessa história — Ele sabe que Jó não tem nada correto para nos ensinar, e mesmo assim o deixa falar, e muito. Com rica poesia derramando lamento e angústia, Deus quer que ouçamos com atenção as palavras de Jó enquanto ele estava enganado, e não devemos discutir com ele, como fazem os amigos (que acabam sendo repreendidos); com ele não aprendemos informações para a mente, mas sentimos a sua paciência sofredora no coração, basta que recebamos sua tristeza e choremos junto.
Jó é um livro inspirado por Deus onde necessitamos da arte que C. S. Lewis trata aqui: é um livro para entrar na mônada Jó e, em silêncio, ver o mundo através das suas lágrimas; o livro para chorarmos uma dor que não é nossa, e clamar por uma justiça que não nos privilegia — para aprender a amar o próximo, e para isso entrar dentro da mente e, em especial, do coração dele.
Para que serve a literatura? Para ouvie e chorar pacientemente com Jó mesmo sabendo mais do que ele. Para não condenar a Sunamita que em seu desespero reclama de ter ganho um filho que nunca pediu, e agora perdeu. Para, sendo cristão, sentir a sinceridade da dúvida existencial do ateu. Para, sendo filho mais velho que nunca saiu da casa do pai, entender que há arrependimento real no filho mais novo e se alegrar. Para, não sendo Deus, através do caleidoscópio das Suas metáforas e parábolas, sentir Seu amor e Sua graça por nós.
Sim, a literatura serve, portanto, como um exercício excelente: um exercício do amor.
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