A narrativa básica da reforma protestante é simples e poderosa, bem resumida na seguinte estrofe de “Tese 95”:
Mas à luz de velas um homem lê
Que o justo viverá pela fé
É, o justo viverá
É, o justo viverá pela fé
É, o justo viverá
— Tese 95, João Manô
Em outras palavras: Certo dia, o Espírito Santo iluminou Martinho Lutero enquanto ele lia Romanos 1:17 de modo que ele percebeu que a salvação que Deus garante não é baseada nas obras nem nos méritos, mas é dada gratuitamente, pela fé nEle. A questão que fica é: Paulo faz um bom uso de Habacuque quando ele cita Hc 2:4 como base dessa justificação pela fé? Bom, é claro, ele é um apóstolo de Cristo, um mensageiro fiel da verdade – mas será que podemos entender esse versículo da mesma forma que ele, simplesmente lendo o texto em seu contexto? Eu creio que sim.
Para isso, vamos seguir o raciocínio do texto:
No capítulo 1, Habacuque questiona o Senhor sobre a pecaminosidade de Judá, e a resposta de Deus estabelece que Ele está enviando os caldeus como punição e juízo a essa pecaminosidade. Eles são o sinal da ira de Deus contra a nação cruel que Israel se tornou (Hc 1:12).
No entanto, Habacuque fica insatisfeito com a resposta, pois Deus usará o ímpio para punir Seu povo. Por isso, no capítulo 2 o Senhor declara o juízo que virá contra os caldeus, de modo que toda iniquidade será punida. Mas antes de pronunciar essa punição, em um breve versículo Deus fala sobre o justo, e diz que ele “viverá pela fé” (Hc 2:4).
Com esse contexto em mente, eu penso que fazemos bem em relacionar esse livro ao livro de Jeremias, que trata da mesma mensagem a respeito do pecado de Judá e do juízo de Deus através dos caldeus. Em Jeremias, falando sobre a mesma situação que levou o povo a ser punido, o Senhor chega a ponto de dizer isso:
"Assim diz o Senhor a respeito deste povo: “Eles gostam de andar errantes e não sabem controlar os pés. Por isso, o Senhor não se agrada deles; agora ele se lembrará das maldades que fizeram e os castigará por causa dos seus pecados.”
O Senhor me disse ainda:
— Não interceda por este povo para o bem dele. Quando jejuarem, não ouvirei o seu clamor e, quando trouxerem holocaustos e ofertas de cereais, não me agradarei deles. Pelo contrário, eu os consumirei pela guerra, pela fome e pela peste.
Jeremias 14:10-12 NAA
Isso é o quão grave era o pecado de Judá aos olhos do Senhor. Agora, ouvindo essas palavras, quem pode esperar viver? Quem sobreviverá ao juízo do Senhor? Mas Deus, mais adiante no mesmo livro, diz por meio de Jeremias que mesmo no exílio Israel deveria confiar nEle e permanecer uma nação santa (Jr 29:1-7), pois Deus eventualmente providenciaria um livramento para o Seu povo (Jr 29:10-14).
E isso é o mesmo que Deus disse a Habacuque – O justo, que de outro modo não teria esperança alguma de sobreviver à punição dos seus pecados, pode ter fé em Deus, pois Ele graciosamente providenciará um livramento, isto é, uma forma de ele viver.
Basicamente, acho que podemos representar a discussão dessa forma:
Os judeus poderiam pensar: “Agora que Deus é contra nós, punindo nossos pecados e nos levando para longe da terra que Ele nos deu, é melhor esquecermos tudo. Deus nos abandonou para sempre porque quebramos a Sua aliança.”
Mas Deus prometeu: “Veja, ainda que minha ira esteja ardendo contra vocês, ainda assim confiem na minha graça, Eu trarei livramento. Ainda que mereçam a morte, pela fé viverão”
Agora vejamos o uso que o apóstolo Paulo faz dessa citação na carta aos Gálatas, onde ele desenvolve sua argumentação um pouco mais do que em Romanos:
"Pois todos os que são das obras da lei estão debaixo de maldição, porque está escrito:
“Maldito todo aquele que não permanece em todas as coisas escritas no Livro da Lei, para praticá-las.”
E é evidente que, pela lei, ninguém é justificado diante de Deus, porque “o justo viverá pela fé”. Ora, a lei não procede de fé, mas “aquele que observar os seus preceitos por eles viverá”. Cristo nos resgatou da maldição da lei, fazendo-se ele próprio maldição em nosso lugar — porque está escrito: “Maldito todo aquele que for pendurado em madeiro” —, para que a bênção de Abraão chegasse aos gentios, em Cristo Jesus, a fim de que recebêssemos, pela fé, o Espírito prometido.
Gálatas 3:10-14 NAA
Aqui temos o mesmo raciocínio: O desespero diante da iminente punição dos pecados, ou seja, da maldição (v. 10), seguido pela afirmação da graça de Deus apesar dos pecados – a promessa de Habacuque de que aquele que tiver fé viverá, ou seja, será poupado da punição (v. 11), contrastada com o fato de que a Lei pouparia somente quem fosse perfeito, não fazendo exceções. O que é realmente novo aqui é o fato de que essa promessa foi cumprida em Cristo (v. 12-14). Assim, o quadro é de tensão entre a Lei, que não faz exceções, e a promessa de Deus, de fazer exceção a quem tiver fé — e a tensão se resolve na morte do Cristo. Ele sofreu a falta de exceção para garantir uma exceção a todos que estiverem unidos a Ele pela fé. Em outras palavras, a promessa existe desde Habacuque, mas a explicação de como ela funciona é apresentada por Paulo.
Portanto, o uso que Paulo faz dessa promessa é perfeitamente coerente, pois agora que Cristo já veio nós finalmente conhecemos de verdade o tamanho da graça de Deus e o meio que Ele proveu para nos perdoar. Pela Lei desesperamos, mas o próprio Deus promete que quem tem fé nEle não conhecerá a morte eterna que seus pecados exigem, mas pelo contrário, viverá.
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