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Um Coração para Jesus | Mc 7:1-23

 O seu coração não é fofo, mas vamos tratar disso daqui a pouco.

 Antes, é preciso saber: afinal, do que é que a Bíblia fala quando fala de “coração”? 


 Uma forma simples de se entender é lembrar de que o susto, o amor e a empolgação sempre têm um mesmo efeito — acelerar o coração dentro do peito. Sendo assim, não é estranho pensar que as nossas ideias e emoções estejam relacionadas a esse órgão. É o coração que te mantém vivo, e também é ele que é afetado com tudo que você quer, pensa e faz. Assim, a Bíblia usa o coração como um símbolo para falar de quem você é. As árvores têm sementes; o homem tem um coração.


 Com essa introdução em mente, podemos ler a Palavra do Senhor:



Mc 7:1-23


 1 Os fariseus e alguns escribas, vindos de Jerusalém, reuniram-se em volta de Jesus. 2 Eles viram que alguns dos discípulos de Jesus comiam pão com as mãos impuras, isto é, sem lavar. 3 Porque os fariseus e todos os judeus, observando a tradição dos anciãos, não comem sem lavar cuidadosamente as mãos. 4 Quando voltam da praça, não comem sem se lavar. E há muitas outras coisas que receberam para observar, como a lavagem de copos, jarros e vasos de metal e camas. 5 Os fariseus e os escribas perguntaram a Jesus:

— Por que os seus discípulos não vivem conforme a tradição dos anciãos, mas comem com as mãos impuras?


6 Jesus respondeu:

— Bem profetizou Isaías a respeito de vocês, hipócritas, como está escrito:


“Este povo me honra

    com os lábios,

mas o seu coração

    está longe de mim.

7 E em vão me adoram,

    ensinando doutrinas

que são preceitos humanos.” 


8 — Rejeitando o mandamento de Deus, vocês guardam a tradição humana.


9 E disse-lhes ainda:

— Vocês sempre encontram uma maneira de rejeitar o mandamento de Deus para guardarem a própria tradição. 10 Pois Moisés disse: “Honre o seu pai e a sua mãe.” E: “Quem maldisser o seu pai ou a sua mãe seja punido de morte.” 11 Vocês, porém, dizem que, se alguém disser ao seu pai ou à sua mãe: “A ajuda que você poderia receber de mim é Corbã, isto é, oferta ao Senhor”, 12 então vocês o dispensam de fazer qualquer coisa em favor do seu pai ou da sua mãe, 13 invalidando a palavra de Deus por meio da tradição que vocês mesmos passam de pai para filho. E fazem muitas outras coisas semelhantes.


14 E, convocando outra vez a multidão, Jesus disse:

— Escutem todos e entendam: 15 Não existe nada fora da pessoa que, entrando nela, possa contaminá-la; mas o que sai da pessoa é o que a contamina. 16 [Se alguém tem ouvidos para ouvir, ouça.]

17 Quando entrou em casa, deixando a multidão, os seus discípulos o interrogaram a respeito da parábola. 18 Jesus lhes disse:

— Então vocês também não entendem? Não compreendem que tudo o que está fora da pessoa, entrando nela, não a pode contaminar, 19 porque não entra no coração dela, mas no estômago, e depois é eliminado?

E, assim, Jesus considerou puros todos os alimentos. 20 E dizia:

— O que sai da pessoa, isso é o que a contamina. 21 Porque de dentro, do coração das pessoas, é que procedem os maus pensamentos, as imoralidades sexuais, os furtos, os homicídios, 22 os adultérios, a avareza, as maldades, o engano, a libertinagem, a inveja, a blasfêmia, o orgulho, a falta de juízo. 23 Todos estes males vêm de dentro e contaminam a pessoa.



 Após a introdução sobre os costumes dos fariseus, nós podemos ver três momentos distintos na cena acima: 1. A indignação de Jesus, 2. A atitude dos fariseus e 3. Uma explicação da impureza. 



  1. O fariseu diz “mão”, Jesus diz “adoração!”


 A cena começa com alguns fariseus chegando a Jesus enquanto os seus discípulos estavam à mesa. Marcos, o autor, aproveita para nos explicar que esses fariseus eram muito rígidos com a higiene da alimentação: lavavam cuidadosamente as mãos, a louça e tudo que poderia entrar em contato com a boca. Isso não era tanto por higiene quanto por religião: naquela cultura, o pecado muitas vezes era considerado como uma “sujeira” — daí surgiu a tradição de que quando uma pessoa vinha da rua, não importava se as mãos estavam limpas, tinham de ser lavadas simplesmente por terem estado no ambiente da rua, e quando ela comia sem lavar as mãos ela estava “engolindo o pecado da rua”, pecando por se sujar com a sujeira do mundo. Era tudo uma “tradição dos anciãos”, uma superstição dos antigos, muito longe do que a Palavra de Deus realmente exige. Mas os fariseus não pensavam assim.


 Chegando e vendo aquela refeição simples, que não seguia essa limpeza supersticiosa, os fariseus ficaram surpresos. “Como pode um mestre deixar os discípulos tão desleixados em relação à tradição?” No entanto, se os fariseus ficam surpresos com a “falta de higiene”, Jesus fica indignado mesmo é com a falta de noção dos fariseus.


 Preste atenção à resposta de Jesus: em vez de responder sobre a limpeza e dizer que isso de lavar as mãos mesmo limpas era exagero e que não era necessário, Jesus vai muito além e tira o verdadeiro problema que estava por trás da superstição dos fariseus. “Vocês querem estar limpinhos para Deus, mas estão muito longe dEle!” A citação do livro do profeta Isaías, do Antigo Testamento, é chocante — “Lábios presentes, mas coração distante”; eles estavam falando com Deus, mas se preocupando com outra coisa, e, portanto, adoravam a Deus em vão. Ou seja, Jesus fica indignado porque o que Deus mais quer não são só mãos limpas e lábios que falam e cantam, mas um coração que faz tudo isso porque realmente O ama. As mãos não alcançam a Deus quando o coração está longe. Para resumir a situação: “Rejeitando o mandamento de Deus, vocês guardam a tradição humana.” E por isso, já que eles gostavam tanto das próprias ideias, Deus os deixou sozinhos. Eles estavam tocando uma serenata em frente a uma casa vazia.


 Que dureza fazer uma pergunta a Jesus e receber essa resposta! Mas não é sem razão, como Ele faz questão de exemplificar:



2. A justificativa é uma venda


 No segundo momento, do versículo 9 ao 13, o Senhor dá um exemplo da lógica corrompida em questão. Contextualizando, existia naquela cultura a ideia de "Corbã". "Corbã" era algo dedicado exclusivamente a Deus, como uma doação. Até aí tudo bem, o problema é o que a engenhosidade humana faz com essa ideia:

 

 Vocês, porém, dizem que, se alguém disser ao seu pai ou à sua mãe: “A ajuda que você poderia receber de mim é Corbã, isto é, oferta ao Senhor”, então vocês o dispensam de fazer qualquer coisa em favor do seu pai ou da sua mãe. (V. 11-12)


 Em outras palavras, o que acontecia era o seguinte:


  1. A Lei dada por Deus diz que o filho deve honrar seus pais;

  2. O fariseu tem dinheiro e seus pais estão precisando, mas ele não quer dar;

  3. O fariseu diz que aquele dinheiro é "Corbã", ou seja, dedicado a Deus e, portanto, não pode ser dado aos pais;

  • Assim, o fariseu se sente livre de cumprir seu dever — o "Corbã" serviu de justificativa para a sua má vontade.



 A profunda indignação de Cristo é fácil de se entender: O homem se faz de cego diante de Deus. Afinal, o mandamento para honrar os pais não poderia ser mais simples, claro e belo — e, no entanto, o homem se recusa a ver a bondade de Deus nele. Eles procuram uma dispensa do serviço em vez de procurar ter um coração que ama o serviço. Usando outra metáfora, os fariseus se desamarram da Palavra sem saber que ela é o nosso único paraquedas nesse mundo caído. Quão grande será a sua queda!


 É fácil identificar duas condenações que o Senhor faz aqui: Uma geral, sobre o excesso de cuidado com rituais, e uma específica, como exemplo, da falta de cuidado com o amor aos pais e, sobretudo, ao Pai que manda que os amemos. Em resumo, até aqui Cristo tem mostrado com bastante seriedade que o olho tem de estar menos no mundo e mais em si mesmo. E é esse assunto que Cristo quer expandir e deixar claro de uma vez por todas. Cristo chama a multidão, pois é um problema de toda a raça humana, não só dos fariseus que se acham certinhos.



3. Os atos mostram de que o coração está cheio


— Então vocês também não entendem? Não compreendem que tudo o que está fora da pessoa, entrando nela, não a pode contaminar, porque não entra no coração dela, mas no estômago, e depois é eliminado?

(...) E dizia:

— O que sai da pessoa, isso é o que a contamina. Porque de dentro, do coração das pessoas, é que procedem os maus pensamentos, as imoralidades sexuais, os furtos… (V. 18-21)


 De uma vez por todas, o Senhor Jesus queria deixar claro o problema do ser humano caído. Lembrando o início do texto, o coração é tratado como o centro do homem — sendo assim, Jesus traça o pecado até essa raiz. Para isso, Ele nega a ideia de que o mal vem de fora, como os fariseus naquele momento acreditavam, e afirma que o problema é muito mais íntimo. Veja, pensar sobre o modo em que nós vemos o coração pode esclarecer ainda mais a discussão.


 Temos a tendência de imaginar que o coração é fofo, mas na verdade ele é um fosso. Se pararmos para pensar, a imagem popular é que o coração é como um rio límpido, que temos de ter cuidado para não contaminar: nossa preocupação é evitar que o mundo despeje lixo pecaminoso em nós e transforme nosso coração em um rio tietê contaminado. No entanto, a imagem que Cristo ensina à multidão e aos discípulos é outra: o coração é, desde a queda, um esgoto. Portanto, a diferença entre o ladrão e o cidadão de bem sem Deus é simplesmente que um está vazando e o outro, não. Mas ambos estão imundos desde o âmago. 


 Olhando o texto mais de perto, vemos isso com clareza: o Senhor está falando sobre sujeira que entra e sujeira que sai. A comida — que era o assunto que os fariseus estavam tratando, como já vimos — simplesmente entra pela boca e logo vai para a latrina. Ou seja, ela não afeta quem o homem é. Por outro lado, o que está saindo da pessoa, as suas atitudes, é o que revela quem ela realmente é. Em outras palavras, a sujeira do alimento tem um local apropriado — a fossa —, mas a sujeira produzida pelo coração do homem não tem: todo dia ele deixa vazar o esgoto do seu coração pecaminoso, e a contaminação com essa sujeira é invisível a nós, só Deus a vê em todos momentos. E Jesus faz questão de destacar o quão imunda é essa sujeira em que o homem se lambuza: de uma só vez Ele cita 13 pecados dos mais variados possíveis.


 Com tudo isso, o ponto acaba sendo que de gênio e de louco todo mundo tem um pouco, e esse é que é o problema. O homem tem em si, no seu coração, uma fábrica de maldade que trabalha noite e dia. No entanto, não podemos perder o que o Senhor Jesus tem em vista com toda essa conversa: sim, Ele afirma que o coração é sujo, mas não é só esse o ponto — o ponto é que esse coração sujo tem de ser trazido a Deus. Lembre-se que a primeira e maior reclamação, feita citando o profeta Isaías, não era de que o coração é sujo; pelo contrário, a reclamação era de que esse coração sujo está longe de Deus. Ou seja, para o Senhor Jesus, o coração é, ao mesmo tempo, uma coisa suja e uma coisa que Deus quer: faz muito sentido, afinal só o sujo precisa de limpeza, e Seu sangue é infinitamente mais eficiente do que a "potassa do lavandeiro", é sabão para a alma que Ele criou.


 Diante de tudo isso que entendemos, podemos aplicar o ensino do Senhor à nossa vida.



  Aplicações


 Podemos com facilidade tirar duas aplicações de toda essa conversa:



1. Não tenha medo de Deus. Nunca se contente em ter um relacionamento mínimo com o Senhor. O que Deus quer não são bocas e mãos, mas o seu coração. Em outras palavras, não faça como o fariseu do exemplo que Jesus dá, que usava o "Corbã" como uma dispensa — não ore simplesmente para ter a "consciência tranquila" de que não deve nada a Deus. Essa atitude, de juntar provas de que você é certinho, trata Deus como se Ele fosse um acusador maligno, e Ele não é nada disso. Ao invés dessa tentativa mesquinha de se proteger de Deus, ponha seu coração nEle. Ele não quer que você simplesmente cumpra um dever, Ele quer que você O ame. O Pai é absolutamente feliz em amar o Filho, Jesus Cristo, e o Filho é absolutamente feliz em amar o Pai — e é por isso que Deus exige que você O ame, para que participe dessa alegria abençoada e transbordante. Nunca se proteja de Deus, mas venha até Ele e esteja sempre perto, porque o próprio Jesus Cristo veio nos levar até Ele — e fica indignado com razão quando você se nega.



2. Tenha medo do seu próprio coração. Você não se conhece tão bem quanto pensa. Não se preocupe só com as muitas formas pelas quais o mundo pode te corromper, como os fariseus se preocupavam, mas também com o modo em que você se corrompe sozinho: o que te condena não são as situações, mas as suas ações. O que faz o ladrão não é a ocasião, mas o coração — e não só o ladrão, mas também o adúltero, o maldoso, o blasfemo e o tolo. O Senhor Jesus ensinou isso de forma muito clara, como vimos. Não é na sujeira da rua que devem estar meus olhos, mas na que está vazando pelas minhas próprias mãos e boca. Mas sempre que perceber que está sujo, lembre-se que é o próprio Senhor que te quer e te limpa. Siga-o até estar longe da própria sujeira, ame o coração manso e humilde do Mestre a ponto de ter o próprio coração transformado — o coração naturalmente é uma fossa de esgoto pecaminoso, mas o próprio Jesus prometeu, em outro lugar, que dá o Seu Espírito a todos que confiam nEle e O seguem, de modo que deixam de ser fossas de pecado e passam a ser fontes que jorram a Vida Eterna.





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