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O Segredo Poético de Temor e Tremor

 O Segredo Poético de Temor e Tremor: 
 Ou
 Algumas Sugestões de Como Evitar a Fé
por Aron Wall
"Somente no silêncio a palavra,
somente na escuridão a luz,
somente na morte, vida:
brilhante o voo do falcão
no céu vazio.
-Criação de Éa"
A Wizard of Earthsea, de Ursula Le Guin

 I - Ação
 Kierkegaard sempre escreve para o leitor. Isso pode parecer óbvio, mas é mais verdade no caso de Kierkegaard do que de outros autores. Kierkegaard nunca se preocupa simplesmente em apresentar a ideia, mas em influenciar os leitores ao bem. Portanto, para entendê-lo, o leitor não deve perguntar "O que Kierkegaard está dizendo?", mas sim, "O que Kierkegaard está tentando fazer comigo como leitor?"

 O propósito central de Temor e Tremor é fazer o leitor agir. O propósito não é causar qualquer tipo de fé intelectual ou emocional, mas somente o tipo de fé que é expressa por atos, já que só esse tipo de fé leva a frutos espirituais."[No mundo do espírito] é verdade que só quem trabalha ganha o pão, que só quem estava ansioso encontra descanso, que só quem desce ao mundo inferior resgata a amada, que só quem toma o cutelo consegue Isaque. " (III 79 [1]). Se alguém não quer trabalhar, ele não terá resultado algum. Esse propósito central é descrito na epístola de onde o nome do livro foi tirado, que exorta: "operai a vossa salvação com temor e tremor; porque Deus é o que opera em vós tanto o querer como o efetuar, segundo a sua boa vontade." (Filipenses 12-13 [2]). É necessário produzir tanto a vontade quanto a ação da fé, com total respeito a Deus que é o principal agente do trabalho.

 Kierkegaard [3] detalha muitos tipos de grandeza heroica em Temor e Tremor, distinguindo especialmente entre "resignação infinita" e fé. Das duas, só a fé requer ação. Pessoas com resignação infinita podem agir de acordo com sua resignação, mas eles precisam se resignar antes de agir. "No momento crucial Agamenon, Jefté, e Brutus heroicamente superaram a agonia, heroicamente perderam a amada, e só precisaram realizar a tarefa externamente." (III 108). O ato de resignação já estava completo antes do sacrifício da criança de fato acontecer. Para ter resignação infinita não é necessário realizar nenhum ato específico, mas só fazer o movimento psicológico de submeter a sua vontade finita à infinita. Se a filha de Agamenon tivesse sido atingida pelos deuses pouco antes dele tê-la sacrificado, ele ainda seria igualmente um herói trágico, não por causa do sacrifício físico mas por causa da nobreza da sua resignação. Kierkegaard nos conta que se a resignação infinita é realizada corretamente, então nenhuma frustração futura pode interferir na sua natureza infinita (III 95). Isso significa que qualquer heroísmo que está envolvido na resignação infinita não vem da própria ação, mas da anterior resignação. A ação não é necessária para a resignação infinita, nem pode destruir a resignação infinita. Segue-se então que a pessoa só com resignação infinita não é grande [N. T.¹] pela ação.

 É diferente com Abraão. Abraão é grande porque agiu: "Ele cortou a lenha, ele amarrou Isaque, ele acendeu o fogo, ele tomou o cutelo" (III 74 [4]). Esse momento de ação é que é o momento crítico para Abraão, quando ele poderia duvidar e perder tudo. "Quem deu força ao braço de Abraão, quem manteve seu braço de modo que ele não caiu incapaz! Qualquer um que olha essa cena fica paralisado. Quem deu força à alma de Abraão de modo que tudo não se lhe escurecesse e ele não pudesse ver nem Isaque nem o carneiro!" (III 74). Se Abraão tivesse tido resignação infinita mas não tivesse fé, ele já teria fortalecido a sua própria alma para a perda de Isaque, então a realização do sacrifício de fato seria apenas externa. Na jornada de três dias até o Monte Moriá houve bastante tempo para se resignar adequadamente, e assim produzir uma barreira psicológica contra a dor da perda. Mas ele também tinha fé, isto é, ele também esperava conseguir Isaque de volta "por virtude do absurdo" (III 87), ele tinha de avançar continuamente crendo enquanto fazia as ações físicas de preparar o sacrifício, sem nunca sucumbir à dúvida. Portanto, alguém com fé recebe crédito por sua ação, porque para ele a ação não é meramente exterior. "Todos foram grandes proporcionalmente à magnitude daquilo com que lutaram" (III 16). Diferente da resignação infinita, o movimento da fé essencialmente envolve a luta com a ação.

 II - O Mundo

 De acordo com Kierkegaard, aqueles que não percebem que a fé essencialmente envolve ação estão condenados a acreditar que ela é algo relativamente sem valor e facilmente obtido. Percebendo que o mundo à sua volta via a fé como sendo uma ideia capaz de ser trivialmente transferida, ele escreve ironicamente a fim de satirizar esse tipo de "fé" barata. "Não só no mundo dos negócios, mas também no mundo das ideias, nossa era é ein wirklicher Ausverkauf [um verdadeiro saldão]. Tudo pode ser obtido por tamanha barganha que se torna uma questão se afinal existe alguém que fará um lance" (III 57). Essa "fé" desvalorizada é o motivo pelo qual a filosofia vãmente supôs poder ir além da fé. Elogiando a era com ironia Socrática, Kierkegaard escreve que:

Na nossa era, ninguém está disposto a parar com a fé mas vai além. Talvez seja rude perguntar aonde eles estão indo, enquanto é um sinal de urbanidade e cultura para mim assumir que todos têm fé, afinal de outro modo seria certamente estranho falar sobre ir além. Era diferente naqueles dias. Na época fé era uma tarefa para toda a vida. (III 59)

  O problema de Kierkegaard com a época [5] é que ela não via a fé como algo que as pessoas precisam se esforçar para obter. "Há um tipo de conhecimento que presunçosamente quer introduzir no mundo do espírito a mesma lei de indiferença sob a qual o mundo exterior geme. Ele acredita que é suficiente conhecer aquilo que é grande -- nenhum outro esforço é necessário." (III 80). Porque a fé é vista como sendo meramente uma questão de adquirir conhecimento, ela pode ser simplesmente herdada da era anterior. A Verdadeira Fé, pelo contrário, nunca pode ser adquirida de outro indivíduo. "Nesse aspecto, cada geração começa primitivamente, e não tem nenhuma tarefa além da qual cada indivíduo anterior teve, nem avançará adiante." (III 166). A fé que é considerada como sendo intelectualmente transmissível se torna nada mais que um bilhete necessário para entrar no trem da filosofia moderna. Essa visão da fé é o motivo da era não entender Abraão. "Talvez dificilmente aconteça que qualquer um fique paralisado ou cego [pelo ato de Abraão], e ainda mais raramente alguém conta o que aconteceu como merece ser contado." Por que? Porque, "Nós já sabemos de tudo -- era só uma provação" (III 74). Desde que nós, diferente de Abraão, sabemos como a história acaba, nós não experienciamos a ansiedade de Abraão, e assim não percebemos a dificuldade da fé. Com a ansiedade de lado, a história se torna para nós uma questão de conhecimento em vez de experiência. Paradoxalmente, ver a fé como se fosse só conhecimento nos impede de entende-la.

 III - O Espelho

 Kierkgaard poderia ter escolhido comunicar a necessidade de ação ao leitor de forma direta. Mas aquele que não quer agir pela fé vai deliberadamente focar em aspectos diferentes e irrelevantes da mensagem em vez do aspecto crucial -- que é colocar a mensagem em prática. Como Tiago diz, "E sede cumpridores da palavra, e não somente ouvintes, enganando-vos a vós mesmos. Porque, se alguém é ouvinte da palavra, e não cumpridor, é semelhante ao homem que contempla ao espelho o seu rosto natural; Porque se contempla a si mesmo, e vai-se, e logo se esquece de como era." (Tiago 1:22-24 [6]). Tiago teve de escrever isso por causa da tendência comum de indivíduos não aplicarem a instrução espiritual às suas vidas. Kierkegaard sabia que se ele escrevesse um livro condenando claramente o equívoco do mundo acerca da fé, acabaria sofrendo o mesmo destino. Os seus leitores poderiam dizer "aceitar" o ensino, mesmo enquanto ignorando cegamente a sua aplicação às suas próprias vidas. O mundo rejeita com maior força não condenando-o, mas aceitando-o como se fosse algo diferente do que ele é. Kierkegaard reconhece essa tendência, não diretamente condenando-a, mas ironicamente fingindo apoiá-la.

 Como o leitor poderia evitar perceber que a instrução espiritual deve ser aplicada à sua vida? Uma forma é considerando a exortação de um ponto de vista puramente intelectual e estético, desse modo reduzindo-a a um tipo insignificante de "fé" que ele já possui. Para mostrar essa tendência, Kierkegaard considera a possibilidade de alguém "se tornar desequilibrado e fazer o mesmo que" Abraão fez, assassinando o seu próprio filho (III 82). Por páginas a fio Kierkegaard discute o perigo formidável que talvez a publicação de Temor e Tremor possivelmente poderia levar ao homicídio! Claro, o leitor não precisa que Kierkegaard lhe diga que é extremamente improvável que qualquer pessoa vá tomar uma lição filosófica da Escritura tão à sério à ponto de cometer um homicídio por sua causa. Mas Kierkegaard considera a possibilidade como se fosse de fato real antes de dispensá-la com uma curta declaração: "Eu certamente creio que ouso falar dela [fé] sem perigo nos nossos dias, que são dificilmente pródigos na fé" (III 83). Considerando a tendência do mundo de se isolar da perturbadora influência das ideias ao negar-se a agir com base nelas, Kierkegaard não precisa se preocupar com o que de outro modo seria um risco real de sacrifício humano. É quase como se Kierkegaard estivesse se dirigindo a um outro mundo, um mundo de indivíduos desequilibrados que poderiam acabar "se lembrando de como eram" depois de se olharem no espelho, que poderiam, caso estivessem dispostos a matar por uma ideia, tomar o passo ainda mais provocativo e perigoso de tratar uma exortação à fé como se tivesse algum grau de relevância em suas vidas. Então Kierkegaard abruptamente se lembra de como é o mundo real e conclui que certamente não existe risco de algo assim acontecer.

 Outra estratégia para evitar lidar com a fé real é minimizar as suas reinvindicações a umas tão simples que alguém pode se iludir e acreditar que já as atingiu. Como um exemplo de reinvindicação que muitos podem querer minimizar, Kierkegaard considera a passagem raramente ouvida de Lucas 14:26: "Se alguém vier a mim, e não aborrecer a seu pai, e mãe, e mulher, e filhos, e irmãos, e irmãs, e ainda também a sua própria vida, não pode ser meu discípulo." [7] Kierkegaard condena os exegetas que tentam aguar tais passagens e evitar o paradoxo explicando o significado de μισειν [odiar], como se fosse "amar menos" (III 121). Ele então usa novamente a ironia para acusar essa estratégia de falhar em estar de acordo com o texto:

 As palavras são terríveis, mas eu ouso dizer que elas podem ser entendidas sem a consequência necessária de que aquele que as entende tem a coragem de fazer o que é entendido. É necessário ser suficientemente honesto, no entanto, para admitir o que elas dizem, para admitir que é excelente mesmo que não se tenha coragem de agir assim. Qualquer um que aja dessa maneira não estará se excluindo da participação nessa linda história. (III 121-122)

 Kierkegaard essencialmente diz, "Eu entendo que vocês estão morrendo de medo de que se entenderem apropriadamente esse tipo de passagem, vocês serão obrigados a agir de acordo e fazer algo desagradável. Essa é a razão de vocês não quererem entende-la. Mas sério, por que não superar esse medo de entender o texto? Afinal, é claro que vocês podem entende-lo e então escolher não ter a coragem de agir de acordo. Então vocês terão o melhor dos dois mundos, tendo tanto o entendimento quanto a covardia." Se o leitor quiser só apreciar a fé na forma de uma linda história, Kierkegaard ajuda-o a apreciar a linda história de modo que preserve a sua grandeza sem nenhum perigo de que ela possa acidentalmente fazer o leitor grande também. 

 Uma terceira técnica é fugir das implicações de uma exortação indesejada focando a atenção no seu autor. Esse é o resultado natural de focar na fé como uma ideia em vez de uma ação. Se a fé é considerada uma ação a ser feita, então o leitor é quem é responsável. Mas se a fé é considerada como uma ideia a ser transmitida, então o autor é que é o responsável. Para mostrar essa transição, Kierkegaard usa o exemplo de um pregador que, ao pregar sobre Abraão estar disposto a sacrificar seu "melhor", fica chocado quando um membro da sua congregação decide que também irá sacrificar seu "melhor", isto é, seu filho. O pregador só se preocupou em apresentar uma ideia. Não passou por sua cabeça que alguém poderia realmente decidir agir de acordo com a história. Então quando ele é confrontado com a ação em potencial ele se enche de paixão. Se a paixão conseguir impedir a ação do outro, então "ele diria para si mesmo e para a sua esposa — Eu sou um orador  o que estava faltando era a ocasião. Quando eu falei de Abraão domingo eu não me senti preso de forma alguma" (III 81). O sermão se torna não a execução de um ato, mas a execução de um teatro. Similarmente, o leitor de Kierkegaard corre o risco de considerar o foco principal como se estivesse no autor, subordinando o ponto que o autor faz. "Tendo falado assim, tendo enchido os leitores de consciência da luta da fé e sua gigantesca paixão, então eu não poderia ser culpado pelo erro da parte dos ouvintes, caso eles pensassem, 'Ele tem fé a ponto de que o que nos resta é nos pendurarmos na sua barra'" (III 84). Se guardando dessa possibilidade, ele faz todos esforços para indicar que os leitores não deveriam estar pensando em Kierkegaard como um autor, ou na fé como um conceito abstrato, mas sim em si mesmos como agentes.

 IV - Parábolas

 Assim, Kierkegaard está bem consciente da forma como o mundo desvia a atenção do principal ponto da fé. Ele sabia que se ele simplesmente escrevesse uma exortação à ação de forma direta, ela não produziria o efeito esperado. Como está escrito:

Ouvis, de fato, e não entendeis,
 e vedes, em verdade, mas não percebeis.
Engorda o coração deste povo,
e faze-lhe pesados os ouvidos,
e fecha-lhe os olhos;
para que ele não veja com os seus olhos,
 e não ouça com os seus ouvidos,
 nem entenda com o seu coração,
 nem se converta e seja sarado. (Isaías 6:9-10)

 Por isso, Kierkegaard escolhe falar às pessoas em parábolas, isto é, através da construção de uma narrativa que se relaciona com a mensagem diretamente ao invés de indiretamente. Esse é o papel do autor pseudônimo, Johannes de Silentio.

 Johannes de Silentio livra o leitor de entender a fé meramente em termos do autor da obra ao explicitamente negar que ele tenha qualquer fé. "De forma alguma eu tenho fé," ele admite (III 84). Enquanto isso certamente não leva o leitor a deixar de dar atenção à voz autoral (na verdade a torna mais perceptível), ele separa o autor do assunto para que o leitor não corra o risco de confundir os dois. Assim o conceito de fé apresentado por de Silentio fica ainda mais chocante pela disparidade entre o autor e seu assunto. Kierkegaard explica o princípio geral assim: "Quando o preço das especiarias caiu na Holanda, os mercadores jogaram no mar algumas cargas a fim de elevar o preço. Isso foi uma enganação desculpável, até necessária. Será que precisamos de algo semelhante no mundo do espírito?" (III 166). De Silentio é a carga jogada no mar; por não ter fé ele aumenta o valor da fé aos olhos do leitor. Diferente do mundo, por outro lado, ele tem a honestidade de admitir isso. "Por mim mesmo, não me falta a coragem de pensar um pensamento completo. Até agora eu não temi nenhum, e se eu encontrasse um tal, eu espero que teria ao menos a honestidade de dizer: esse pensamento me dá medo, ele me deixa chocado, e por isso não vou pensa-lo" (III 82). Se, como o mundo, de Silentio fosse covarde demais para pensar pensamentos desconfortáveis, ele teria ao menos a honestidade de admitir isso. Com a demonstração da superioridade de de Silentio em relação ao mundo, Kierkegaard quer constranger o leitor se ele tentar minimizar o papel da fé para fazê-la mais confortável.

 Então das três estratégias (discutidas na seção anterior) de falhar estar em acordo com a fé, de Silentio previne duas delas: o foco no autor e a minimização da fé. Ele não previne diretamente a primeira estratégia, de considerar a fé descrita como uma ideia interessante a ser aceita, em vez de demandar uma mudança de vida. O ataque de Kierkegaard a essa ideia envolve de Silentio, não diretamente mas ironicamente. Como Kierkegaard explica:

Do ponto de vista total de todo o meu trabalho como autor, a escrita estética é uma enganação, e aí está o significado mais profundo dos pseudônimos... O que significa, então, "enganar"? Significa que não se começa diretamente naquilo que se deseja comunicar mas se começa tomando a ilusão do outro como correta em si mesma. Assim não se começa dessa forma: Eu sou cristão, você não é cristão — mas dessa forma: Você é cristão, eu não sou cristão. Também não se começa dessa forma: Estou proclamando o Cristianismo, e você vive em categorias puramente estéticas. Não, se começa dessa forma: Vamos conversar sobre estética. A enganação consiste em falar desse modo precisamente para chegar à religião. (The point of View XIII 540-541 [8])

 Então Kierkegaard escreve com um propósito religioso, mas Johannes de Silentio escreve com um propósito estético. O propósito religioso é imitar a fé de Abraão, mas o propósito estético é apreciar a fé de Abraão. Kierkegaard escreve para uma era "esteticamente voluptuosa" (III 132), uma era que está interessada na fé como se fosse apenas um conceito interessante. Ao usar de Silentio, que escreve por um propósito estético, Kierkegaard então ironicamente assume por um momento, a la Sócrates, a própria posição que ele quer refutar. 

 Esse contraste entre o real propósito de Kierkegaard e o propósito ostensivo de de Silentio se torna muito vívido quando ele [9] termina um parágrafo concluindo que "fé não é o estético, do contrário a fé nunca existiu porque teria sempre existido" (III 130), e começa o seguinte decidindo que "A esse ponto seria melhor considerar toda a questão de maneira puramente estética e para isso entrar numa investigação estética" (III 131). Depois de concluir que a fé não é estética, de Silentio imediatamente assume que devido aos leitores serem tão estéticos, eles iriam certamente querer abandonar o assunto da fé em favor de uma análise estética. Ele continua e introduz a categoria estética do "interessante",

uma categoria que especialmente agora — afinal a era vive num discrimine rerum [num ponto crucial na história] — se tornou bastante importante, porque é a categoria do ponto crucial. Portanto não poderia, como acontece às vezes depois de alguém se enamorar dele pro virili [com todas as forças], desdenhar da categoria porque ele cresceu para além dela, mas uma pessoa também não deveria se tornar tão ciumenta por ela, porque uma coisa é certa, se tornar interessante, ter uma vida interessante, não é uma tarefa feita com as próprias mãos mas um privilégio monumental, que, como qualquer outro privilégio no mundo do espírito, é comprado somente em severas dores. Assim Sócrates foi o homem mais interessante que já viveu, sua vida a vida mais interessante já vivida, mas essa existência foi designada por um deus, e tanto quanto ele precisava por si mesmo adquiri-la, ele não foi estranho à dor. (III 131)

 Essa passagem está encharcada de sarcasmo. À luz do que apareceu antes, mostrando que a fé está muito além de ser somente estética em suas qualidades, esse louvor excessivo à uma categoria estética deveria parecer um desanimador e bastante desproporcional prêmio de consolação para quem não tem fé. Essa interpretação é apoiada ainda mais por se dizer que a "categoria do ponto crucial" deve ser especialmente importante pelo seu alinhamento com a natureza da era, uma era que já foi completamente condenada por desprezar os movimentos apaixonados da alma em troca de substitutos falsos. Se qualquer coisa ainda precisa ser dita, a referência a Sócrates apenas como o cumprimento de uma vida "interessante" deveria parecer ao leitor sofisticado de Platão como sendo uma palavra não tão adequada para descrever a virtude primária do pai da ironia filosófica. Kierkegaard está destacando o absurdo da tentativa meramente estética da era de apreciar a fé. Sua declaração de que essa categoria beira o ético (III 131), meramente mostra que a era não consegue sequer apreciar o ético exceto em termos estéticos.

 Ainda que o leitor estético esteja aparentemente sendo acomodado nas suas preferências estéticas, na realidade ele está sendo alertado para longe de sua confiança na estética. "Um ou dois predicados podem trair o mundo todo" (III 131). O predicado que trai o mundo é a estética, porque ela convence que a fé real não é necessária. O resultado final dessa visão estética é mais tarde esclarecido: a Agnes da lenda, que pede o interessante, não tem inocência para se proteger, e então está suscetível a ser seduzida pelo tritão e afogada (III 143). Atraindo os leitores com a ajuda do pseudônimo, Kierkegaard quer chocar a visão da fé deles contra um muro.

V - O Sistema

 De Silentio, como autor de uma obra estética, tem a tarefa poética de magnificar seu assunto — Abraão e sua fé — por meio de um um arranjo meticuloso e artístico. Ele faz isso construindo uma hierarquia pseudo-Hegeliana de uma "série de configurações pelas quais a consciência passa" (Fenomenologia do Espírito de Hegel, parágrafo 78) no seu progresso rumo à fé. A diferença é que ao contrário de Hegel, que usa a mediação para explicar o progresso ao longo dessa série, de Silentio usa a paixão:

Todo movimento do infinito é executado através da paixão, e nenhuma reflexão pode produzir o movimento. Esse é o salto contínuo na existência que explica o movimento, enquanto a mediação é uma quimera, que em Hegel supostamente explica tudo, e que também é a única coisa que ele nunca tentou explicar. (III 93 nota de rodapé)

 A fim de ironicamente atacar o sistema filosófico Hegeliano, Kierkegaard "[toma] a ilusão do outro como correta" (Point of View XII 541). A ilusão nesse caso é o respeito dado ao sistema. Portanto, de Silentio diz que ainda que ele tenha o maior respeito ao sistema, ele não consegue compreendê-lo e deve se apegar a uma tarefa poética de menor magnitude. De acordo com isso, ele nos diz que:

O presente autor não é de modo algum um filósofo. Ele não entendeu o sistema, se é que existe um, se é que esteja completo; já é suficiente para a sua fraca cabeça ponderar que prodigiosa cabeça todos devem ter por esses dias em que todos tem uma tão prodigiosa ideia... O presente autor não é de modo algum um filósofo. Ele é poetice et eleganter [de modo poético e refinado] um funcionário suplente que nem escreve o sistema e nem faz promessas do sistema, que nem se exausta no sistema nem se prende ao sistema. (III 59)

 Ainda assim, em vista do estilo irônico de Kierkegaard, quanto mais ele insiste que seu trabalho não tem nada a ver com o sistema, mais certos podemos estar de que ele na realidade pretendia criticar o sistema. Apesar da sua negação, Temor e Tremor tem um sistema próprio, um sistema construído para ser superficialmente similar ao sistema Hegeliano em alguns aspectos, mas com a fé no final da série, em vez de ser relegada a um lugar no meio dela [10]. Já que a era "passou a paixão a fim de servir a ciência" (III 59), ele ataca a ciência (no sentido hegeliano) com um novo sistema baseado nas paixões.

 A principal característica do pseudo-sistema de de Silentio é a tripla classificação dos tipos de grandeza: aqueles que não atingiram a resignação infinita, aqueles que têm resignação infinita mas não fé, e aqueles que têm fé. Essa divisão tripla é revelada em certas tríades de grandeza descritas no Elogio. "Um se tornou grande por esperar o possível, outro por esperar o eterno; mas aquele que esperou o impossível se tornou o maior de todos" (III 69). O primeiro teve uma grandeza ordinária, o segundo o infinito, e o terceiro tem fé porque espera o finito por virtude do absurdo. De novo, "Aquele que lutou com o mundo [para conseguir o possível] se tornou grande por conquistar o mundo, e aquele que lutou consigo mesmo [para resignar seu desejo] se tornou grande por conquistar a si mesmo, mas aquele que lutou com Deus [para obter o finito através da fé] se tornou o maior de todos" (III 69). Mais uma vez: "Houve aquele que se apoiou em si mesmo e ganhou tudo [confiar no seu próprio esforço para realizar seus desejos é uma forma possível de grandeza], houve aquele que seguro da sua força [de resignação] sacrificou tudo [por causa do infinito]; mas aquele que creu em Deus [fé] foi o maior de todos" (III 69).
 Todas essas três variedades de grandeza são reconhecidas por de Silentio [11] como sendo genuinamente grandes, isto é, existe uma quarta classificação que consiste naqueles que não querem ser grandes, os "escravos do finito, os sapos no pântano da vida, [que] gritam: Esse tipo de amor é tolice; a viúva rica do fabricante de cerveja é uma alternativa tão boa e sólida [quanto a princesa]" (III 92). Semelhantemente, a fim de cobrir todas as camadas de mérito dadas por de Silentio, é necessário incluir aqueles que tentam subir ao nível de resignação infinita mas não fazem o movimento corretamente, e assim acabam presos entre duas formas de grandeza. "Na resignação infinita há paz e descanso e conforto na dor, isto é, quando o movimento é feito de acordo com a norma. Eu poderia facilmente escrever um livro inteiro se eu fosse expor os vários desentendimentos, as posições constrangedoras, os movimentos mal feitos que encontrei só na minha pequena experiência própria." (III 96) [12]. Dito assim, pode-se identificar cinco diferentes strata ou estágios, o último dos quais é a fé.

 O propósito poético dessa hierarquia é exaltar a fé por meio de uma técnica a fortiori pela qual certas paixões que são menores que a fé são ainda assim admiradas como grandes, dessa forma indicando que a fé deva ser ainda mais profunda e maravilhosa. Por exemplo, de Silentio mostra como a fé é exaltada acima do estético por meio de um exemplo de alguém que é grande por esperar o possível, quando comparado com os superiores na escala de grandeza:

Precisamente porque a resignação é antecedente, a fé não é uma emoção estética mas algo muito superior; não é uma inclinação espontânea do coração mas o paradoxo da existência. Se, por exemplo, uma jovem garota permanece convicta de que seu desejo será atendido, essa certeza não é fé de modo algum, ainda que ela tenha sido criada por pais cristãos e talvez até tenha tido o Ensino Confirmatório de seu pastor por um ano inteiro. Ela está convicta em toda a sua inocência infantil, e essa certeza enobrece a sua natureza e lhe dá uma magnitude sobrenatural de forma que como um taumaturgo ela consegue invocar os poderes finitos da existência e levar até pedras às lágrimas... mas há uma coisa que não se pode aprender com ela — como fazer os movimentos — porque a sua certeza não ousa, na dor da resignação, a olhar para a impossibilidade nos olhos. (III 97)

  O artifício poético de Johannes de Silentio deixa claro o que a fé não é, e assim faz a fé contrastar com as formas inferiores de grandeza a fim de trazer à tona a verdadeira fé. Ao mesmo tempo, ele atinge os propósitos de Kierkegaard ao apunhalar ironicamente ainda outra vez aqueles que creem ser cristãos, e ainda assim pensam na fé apenas em termos estéticos.

 Semelhantemente, a dificuldade de mover do penúltimo degrau para a fé é poeticamente realçada pelas confissões de incapacidade de de Silentio. "Eu presumivelmente posso descrever os movimentos da fé, mas eu não posso fazê-los" (III 88). Seria possível continuar por páginas a fio descrevendo todos os contrastes que de Silentio faz entre o que ele é (o cavaleiro da resignação infinita), e o que ele descreve (o cavaleiro da fé). Toda vez que de Silentio faz isso, ele glorifica a fé em comparação a si mesmo.

 Essa "eleva[ção] do preço da fé" ao contrastá-la com os estágios inferiores que não são a fé é o propósito poético direto de de Silentio. Se o leitor está contente em tomar a obra de de Silentio em si mesma, então o efeito seria fazer a fé parecer inalcançavelmente grande. Esse efeito pode no entanto encorajar certos leitores a buscar avançar pelo caminho descrito por de Silentio através da paixão até chegar na fé. "Eu começaria descrevendo que homem devoto e temente a Deus Abraão era... Em seguida, eu descreveria como Abraão amava Isaque... Se fosse feito apropriadamente, o resultado seria que alguns pais de modo algum gostariam de continuar ouvindo mas por hora estariam satisfeitos em amar como Abraão amava" (III 83). Se alguém lê Temor e Tremor e tem essa atitude, Kierkegaard sem dúvida ficaria satisfeito, considerando que ele teria assim inspirado essa pessoa a humildemente buscar como produzir algo bom através de ações. Mas se um de seus leitores sofresse de "insônia" (III 80), então esse leitor poderia muito bem ser perturbado por todas as barreiras que de Silentio constrói para separá-lo da fé. Ele pensaria se ele também é tão incapaz em relação à fé, considerando as dificuldades de de Silentio. Tal leitor está em posição de entender a mensagem oculta de Kierkegaard, que vai além do sistema poético de de Silentio para uma apreciação ainda maior da fé.

 VI - O Diabo

 Quando de Silentio se apresenta como um funcionário poético e elegante (III 59) no Prefácio, o leitor é preparado naturalmente a identificar de Silentio com o poeta (ou orador), tão vividamente representado no Elogio a Abraão: Como Deus criou homem e mulher, Ele também criou o herói e o poeta ou orador. O poeta ou orador não pode fazer nada que o herói faz; ele só pode admirar, amar, e se deleitar nele. Ainda assim ele é feliz também — não menos que o outro é, porque o herói é, por assim dizer, sua melhor natureza, pela qual ele está apaixonado — ainda assim é feliz porque ele próprio não é o outro, que seu amor pode ser admiração... Se ele permanecer fiel ao seu amor desse modo, se ele contender dia e noite contra as artimanhas do esquecimento, que querem levá-lo para longe de seu herói, então ele terá cumprido sua tarefa, então ele irá para junto do herói, que o amou fielmente, porque o poeta é, por assim dizer, a melhor natureza do herói, fraco, com certeza, como a memória é, mas também transfigurado, como a memória é. Portanto ninguém que foi grande será esquecido, e mesmo que leve muito tempo, mesmo que uma nuvem de desentendimentos envolva o herói, seu amante ainda assim virá, e quanto mais o tempo passar, mais fielmente ele se apegará a ele. (III 69) O poeta e o herói precisam um do outro, cada um sendo a "melhor natureza" do outro. Como o homem e a mulher, a sua felicidade está no outro, afinal o feito do herói é resgatado do esquecimento pelo poeta, e o poeta participa vicariamente no grande feito do herói. Dado o contexto, o leitor é levado a identificar o poeta com de Silentio e o herói com Abraão. Abraão está coberto com uma "nuvem de desentendimento" por aqueles que querem ir além da fé. Mas de Silentio, que ama e admira Abraão, apresenta Abraão ao mundo em toda a sua glória, como o poeta apresenta o herói. E como o poeta não pode fazer nada que o herói faz, de Silentio também não pode fazer nada que Abraão faz, porque ele não tem fé. Vamos então tentar identificar de Silentio com o poeta e Abraão com o herói, e ver que conclusões podem ser tiradas disso. Então ficará claro se de Silentio realmente pode ser considerado como sendo o poeta da fé.

 Apesar da nobreza do poeta representado acima, o resto de Temor e Tremor contém diversas representações negativas do poeta (ou orador). O pregador anuncia "Eu sou um orador" (III 81). Ele rejeita a fé como ação , e assim pode somente apreciar a "fé" em termos estéticos. "O poeta não pode fazer nada que o herói faz." Em outras palavras, o poeta da fé, por estar tentando descrever a fé esteticamente, não pode ser um homem de fé. "Aquele que não trabalha não ganha o pão mas é iludido como os deuses iludiram Orfeu com um fantasma etéreo em vez da amada, iludiram-no porque ele era frouxo, não ousadamente corajoso, iludiram-no porque era um tocador de lira e não um homem" (III 79). Orfeu recebeu o fantasma da amada porque era um poeta. Instruído de que não poderia se virar para vê-la, ele não a recebe porque ele não tem fé. Ele desobedece a injunção porque ele é um "tocador de lira", ou seja, um poeta. Uma insinuação ainda mais sinistra é feita contra o poeta quando de Silentio agradece Shakespeare,

você que pode dizer tudo, tudo, tudo justamente como é — e mesmo assim, por que você nunca articulou esse tormento [de ansiedade por Abraão]. Talvez você o tenha reservado para si mesmo, como o nome da amada que não se pode permitir ao mundo pronunciar, porque com seu segredinho que ele não pode divulgar o poeta compra o poder da palavra para contar todos os segredos obscuros dos outros. Um poeta não é um apóstolo; ele expulsa demônios só pelo poder do diabo. (III 111 [13]).

 Essa passagem sugere que o poeta, longe de ser inocente, precisa entrar no "paradoxo demoníaco" no qual o indivíduo é maior que o universal, num sentido maligno — isto é, esteticamente (III 144-146). Se o principal "poeta" de Temor e Tremor é Johannes de Silentio, então todos esses outros poetas precisam ser interpretados como elucidando seu papel, e são assim projeções ou representações de de Silentio. De Silentio parece a principio ser honesto e humilde na sua confissão de que lhe falta fé, mas essas passagens sugerem que por trás da aparência de humildade está um horrível segredo.

VII - Uma Semente de Mostarda

 Por que o papel estético de de Silentio como o poeta da fé impede-o de ter fé? Como o poeta da fé, cheio de resignação infinita, ele não aprecia a fé real mas uma fé idealizada e poetizada. A primeira é fé nas condições limitadas da humanidade, enquanto a segunda é uma grande concepção de fé, que não pode ser achada nas pessoas reais. Mesmo no seu desejo por fé, de Silentio não quer o finito, mas o infinito. Por isso ele paradoxalmente quer um retorno infinito para o finito, o que é impossível. "Eu honestamente confesso que na minha experiência eu não encontrei uma só instância autêntica [de fé], ainda que não possa negar que qualquer pessoa possa ser essa instância" (III 89). De Silentio aqui reivindica que nunca viu um cristão que realmente tenha fé. Ainda que ele tenha romantizado o senso de quão ordinário é o homem de fé, que o permite admitir (como o infinito) que qualquer um pode ter fé, ele não pode reconhecer (e isso é o finito), que qualquer um que ele vê tenha fé.

 Essa tendência pode ser vista na sua descrição do homem que tem fé: "aqueles que carregam o tesouro da fé tendem a decepcionar, porque externamente eles têm uma chocante semelhança com o filistinismo burguês" (III 89). Por isso, apesar do fato de que ele "parece um coletor de impostos" (III 89), seja lá o que isso queira dizer, ele é na verdade revelado como tendo em todo seu comportamento uma mistura peculiar de expectativa contínua e magnanimidade escondidas numa intensa banalidade (III 90-91). A principal coisa a se ter em mente sobre essa descrição é que Johannes de Silentio está descrevendo alguém que ele nunca conheceu, nem espera conhecer — uma invenção da sua imaginação, incrivelmente detalhada. Assim qualquer "homem de fé" real que ele encontre provavelmente o decepcionaria. O homem que ele descreve é notável não só por sua fé mas pela facilidade com que possui fé. Sua completa ausência de gênio, frustração ou angústia não permite uma expressão de seu caráter em qualquer pessoa real. Esse cavaleiro da fé dificilmente seria mais excepcional se ele fosse um cavaleiro real desejando uma princesa real.

 De Silentio condena o mundo por estar fazendo exatamente o que ele faz. "Nos nossos dias as pessoas vão mais longe e explicam mais do que elas mesmas entenderam" (III 136 nota de rodapé). O que de Silentio está fazendo senão cuidadosamente explicar aos seus leitores o que é a fé, quando por sua própria confissão ele nunca a viu nem a experienciou? De novo, "qualquer coisa que só é boa à distância, que alguém quer fazer boa com frases vazias e vãs — é destruída por essa própria pessoa" (III 114). Mas de Silentio só pode apreciar a fé à distância. Ele não pode vê-la em si mesmo, nem em qualquer outra pessoa que encontra, mas só numa figura distante como Abraão ou em uma pessoa idealizada como o "coletor de impostos".

 Paradoxalmente, a fim de realmente ter fé é preciso não respeitá-la demais. Em outras palavras, é preciso obedecer. Quem obedece sabe que não importa o quão grande a fé possa ser, "nenhum sacrifício é tão severo se Deus o requer" (III 74). Se Deus requer fé, então a fé é pequena o suficiente para ser possível. Quando a fé é vista como uma tarefa incrivelmente difícil, passa despercebido o fato de que o conteúdo da fé não é nada mais do que seguir as ordens de Deus. Jesus desencorajou esse tipo de noção grandiosa em relação à fé. Ele disse:


 "Olhai por vós mesmos. E, se teu irmão pecar contra ti, repreende-o; e, se ele se arrepender, perdoa-lhe; e, se pecar contra ti sete vezes no dia e sete vezes no dia vier ter contigo, dizendo:' Arrependo-me', perdoa-lhe."

 Disseram, então, os apóstolos ao Senhor: "Acrescenta-nos a fé." E disse o Senhor: "Se tivésseis fé como um grão de mostarda, diríeis a esta amoreira: 'Desarraiga-te daqui e planta-te no mar', e ela vos obedeceria. E qual de vós terá um servo a lavrar ou a apascentar gado, a quem, voltando ele do campo, diga: 'Chega-te e assenta-te à mesa?' E não lhe diga antes: Prepara-me a ceia, e cinge-te, e serve-me, até que tenha comido e bebido, e depois comerás e beberás tu? Porventura, dá graças ao tal servo, porque fez o que lhe foi mandado? Creio que não. Assim também vós, quando fizerdes tudo o que vos for mandado, dizei: 'Somos servos inúteis, porque fizemos somente o que devíamos fazer'." (Lucas 17:3-10)

 Aos apóstolos foi dada, como a Abraão, uma injunção que pareceu estar além da sua capacidade de atendê-la. Se esquivando do teste real (envolvendo obediência), eles fizeram dela uma questão de adquirir uma habilidade sobrenatural (convenientemente se eximindo de realizar seu dever). Jesus os repreende apontando que eles não precisam de uma quantidade incrível de fé para realizar o "milagre" do perdão. Tudo que os apóstolos precisam é uma "semente de mostarda" de fé que vê as ordens de Deus como obrigatórias, e portanto possíveis, e eles terão poder para realizar quaisquer sejam os milagres necessários para a sua tarefa. Então Jesus compara a situação à de um servo a fim de esclarecer que a questão essencial não está na grandeza da tarefa mas na sua obediência à tarefa. Nas palavras de Kierkegaard, "há um dever absoluto em relação a Deus" (Problema II).

 VIII - As Papoulas

 Consequentemente o verdadeiro leitor de Temor e Tremor deve rejeitar Johannes de Silentio em favor da mensagem real do livro: que a fé, para ser verdadeira, deve envolver ação ao invés de estética. Kierkegaard nos avisa que o pseudônimo deve ser rejeitado em favor do significado secreto com seu epigrama "O que Tarquínio Soberbo disse no jardim por meio das papoulas o filho entendeu, mas o mensageiro não." [14] O filho de Tarquínio tinha se infiltrado entre os inimigos de seu pai, os Gábios, como um suposto amigo. Ele então enviou um mensageiro a seu pai para perguntar-lhe o que fazer a seguir. Seu pai, não confiando no mensageiro, não disse uma palavra. Em vez disso ele foi ao jardim e arrancou as cabeças das papoulas. O mensageiro, pensando que o pai se recusava a responder, disse ao filho o que seu pai fez. Mas o filho percebeu que o pai queria que ele matasse os líderes dos Gábios. [15]

 Assim o pai é Kierkegaard, o mensageiro é Johannes de Silentio, e o filho é o verdadeiro leitor de Temor e Tremor. O ponto da história não é que o mensageiro era estúpido demais para entender a mensagem. Na verdade, o mensageiro não entendeu porque ele estava esperando uma mensagem, mas o filho entendeu porque ele estava esperando para agir. Como está escrito: "A minha doutrina não é minha, mas daquele que me enviou. Se alguém quiser fazer a vontade dele, pela mesma doutrina conhecerá se ela é de Deus, ou se eu falo de mim mesmo." (João 7:16, 17). Johannes de Silentio não consegue entender Abraão porque ele não agirá; em vez disso ele tenta entendê-lo esteticamente e falha.

 Por isso de Silentio não tem sucesso em ser o poeta da fé, por não entender seu assunto. "Abraão eu não consigo entender; num certo sentido eu consigo mas não posso fazer nada senão ficar maravilhado" (III 88). Ainda que o poeta "não seja menos feliz do que [o herói é]" (III 68), a alegria de de Silentio "não é a alegria da fé, e em comparação com esta, é infeliz" (III 85). Kierkegaard prepara o leitor para pensar que de Silentio é o poeta de Abraão, ironicamente assumindo a premissa do mundo de que a fé pode ser apreciada em termos estéticos. Mas então ele planta mais e mais pistas de que essa aproximação estética está fadada ao fracasso, até que perto do fim do livro de Silentio admite de vez: "Eu não sou um poeta" (III 138). De Silentio nunca encara esse problema. Em vez disso é deixado para o leitor determinar por seu próprio exemplo que um tratamento estético da fé não tem sucesso algum. "Esses movimentos e posições presumivelmente ainda podem ser assuntos para um tratamento estético, mas a que extensão a fé e toda a vida da fé podem ser eu deixo em aberto aqui" (III 136 nota de rodapé). Pela omissão de de Silentio Kierkegaard espera chamar a atenção do leitor a essa questão fundamental.

 IX - O Paradoxo Divino

 A razão do fracasso de de Silentio como poeta é que Abraão é mais que um herói. "Eu me imagino no herói; eu não consigo me imaginar em Abraão" (III 85). Devido o poeta e o herói serem feitos um para o outro, qualquer um que transcenda o status de herói não pode ser entendido por qualquer poeta.

 Por que Abraão é mais que um herói? A razão é que por virtude da sua fé, ele não pode mais comunicar seu sofrimento e bem aventurança aos outros: "Abraão não pode ser mediado; em outras palavras, ele não pode falar. Tão logo eu falo, eu expresso o universal, e se eu não o faço, ninguém pode me entender" (III 110). Falar, que é oratória, precisa usar a linguagem do universal, e portanto não pode expressar nada maior que o infinito. Abraão, por outro lado, tem fé, cuja essência é a ação. Se Abraão tentasse comunicar a sua fé, ele teria de construir uma mensagem. Mas a fé não pode ser entendida se é entendida somente como uma mensagem. Portanto é impossível para ele comunicar a sua fé. Por isso ele não se revela a nenhum poeta.

 Contraste isso com o herói trágico. "O herói trágico, que é o favorito da ética, é puramente humano; ele eu posso entender, e todas suas atitudes são claras. Se eu vou mais fundo, eu sempre entro num paradoxo, o divino e o demoníaco, pois o silêncio está em ambos. Silêncio é a armadilha do demônio... Mas o silêncio também é o entendimento mútuo do divino com o indivíduo" (III 135-136). Nós já encontramos o silêncio demoníaco no segredo poético de Johannes de Silentio (daí o seu nome). Mas Abraão tem o paradoxo divino da fé, por isso seu silêncio é de um tipo diferente. Enquanto o segredo demoníaco é deliberadamente escondido, o segredo divino não pode ser expressado, porque é muito grandioso. "Abraão permanece silencioso — mas ele não pode falar... Ainda que eu falasse e falasse noite e dia sem interrupção, se eu não consigo me fazer entendido, eu não estou falando" (III 159).

 Para ilustrar essa incomunicabilidade da fé ainda mais, Kierkegaard usa o exemplo "daquela mulher agraciada, a mãe de Deus, a Virgem Maria." Ela de fato foi agraciada, mas a "ansiedade, aflição e paradoxo" era sua incapacidade de comunicar essa graça ao mundo. "[O anjo] não foi um espírito intrometido que visitou as outras moças de Israel e disse: Não zombem de Maria, o extraordinário está acontecendo com ela. O anjo visitou somente Maria, e ninguém pôde entende-la" (III 114). Se ela tivesse sido grande no sentido heroico, então as outras moças vigorosamente apreciariam seu feito. "Bendita seja entre as mulheres, Jael" (Juízes 5:24), que atingiu o opressor de Israel com uma estaca de tenda. Seu feito foi comemorado em música, mas para a aparência do mundo Maria era uma adúltera. É um testemunho de sua grandeza ela não ser elogiada pelo mundo. "Ela precisa da admiração do mundo tanto quanto Abraão precisa de lágrimas, pois ela não era heroína nem ele herói, mas ambos se tornaram maiores que estes, não por se eximirem de qualquer forma da aflição e da ansiedade e do paradoxo, mas se tornaram maiores por meio destes" (III 115). Fé requer agir contra a admiração do mundo. 

 Isso quer dizer que não existe poesia da fé? Na verdade não. Os ataques que Kierkegaard faz à poesia são direcionados à tentativa de receber a fé sem ação, por meios estéticos. Eles condenam Johannes de Silentio. Mas de Silentio sequer consegue chegar a ser um poeta. Não ele mas sim Abraão é que é o verdadeiro poeta da fé. "É comumente suposto que o que a fé produz não seja uma obra de arte, que é uma obra tosca e grosseira... mas está longe de ser assim. A dialética da fé é a mais refinada e extraordinária de todas" (III 87). A fé é uma obra de arte, mas essa obra é expressa por feitos, não palavras. A poesia está encarnada na vida de Abraão, nas suas ações. Esse é o motivo de, diferente do herói comum, ele "não ter necessidade de um posterior amante para resgatar a sua memória do poder do esquecimento" (III 23) A poesia já está presente nas suas ações sem a necessidade de outra pessoa chegar mais tarde. Abraão "fala uma língua divina, ele fala em línguas" (III 160). A língua divina é incompreensível a qualquer um que não queira agir, porque ela é ação. "Mostra-me a tua fé sem as tuas obras, e eu te mostrarei a minha fé pelas minhas obras... Porventura o nosso pai Abraão não foi justificado pelas obras, quando ofereceu sobre o altar o seu filho Isaque? Bem vês que a fé cooperou com as suas obras, e que pelas obras a fé foi aperfeiçoada." (Tiago 2:18; 21,22). Abraão expressou sua fé com suas obras, que são um veículo próprio para essa expressão. A razão pela qual Johannes de Silentio não pode ter fé é que lhe falta a língua na qual ela se expressa.

 "Aqui novamente parece que alguém pode talvez entender Abraão, mas só da forma que alguém entende o paradoxo. Eu, da minha parte, talvez possa entender Abraão, mas eu também percebo que eu não tenho a coragem de falar desse modo, não mais do que tenho a coragem de agir como Abraão agiu [ênfase minha]; mas de forma alguma por isso eu digo que o ato é de pouca importância, porque, pelo contrário, ele é a principal e única maravilha." (III 165). Usando essa língua divina, Abraão é o verdadeiro poeta, o verdadeiro herói, e o verdadeiro filósofo. Porque a verdadeira filosofia não é só um jogo sistemático, mas aprender a morrer. [16]

 X - Silêncio

 O que é ironia?

Uma palavra final de Abraão foi preservada, e tanto quanto eu posso entender o paradoxo, eu posso também entender a presença total de Abraão nessa palavra. Mais do que tudo, ele não diz nada, e dessa forma ele diz tudo que ele tem a dizer. Sua resposta a Isaque é uma forma de ironia, porque sempre é ironia quando eu digo algo e ao mesmo tempo não digo nada. (III 164)

 Abraão não pode se comunicar com Isaque, então ele diz algo, mas o que ele diz não tem significado, exceto se por meio da ironia ele conseguir de alguma maneira produzir fé. No silêncio da fé, Kierkegaard deve comunicar. Mas já que ele não pode comunicar a substância da fé, ele não tem escolha senão falar ironicamente, pela pessoa de Johannes de Silentio, cujo nome também expressa o silêncio divino. Semelhantemente, Kierkegaard não diz nada; cabe ao leitor perceber seu verdadeiro significado. Essa é a razão pela qual Kierkegaard engana o leitor:

Comunicação direta pressupõe que a capacidade de receber do recipiente está plenamente em ordem, mas esse não é o caso aqui — de fato, aqui um engano é um obstáculo. Isso significa que um corrosivo deve ser usado primeiro, mas esse corrosivo é o negativo, mas o negativo se tratando de comunicação é precisamente enganar. (Point of View XIII 541)

 O negativo relacionado à comunicação também é o silêncio. O Silêncio é o corrosivo pelo qual Kierkegaard reduz de Silentio, e com ele a estética da fé do leitor, a nada. Esse silêncio tem o único propósito de permitir ao leitor ouvir e entender a voz de Deus:

Somente nesse silêncio uma pessoa recebe a habilidade de entender e agir. É precisamente desse silêncio que precisamos se a Palavra de Deus deve ganhar um pouco mais de poder sobre as pessoas... A primeira coisa, a condição incondicional para qualquer coisa ser feita, consequentemente a primeira coisa que deve ser feita, é esta: criar silêncio, trazer silêncio, a Palavra de Deus não pode ser ouvida! (For Self-Examination XII 334)

 Se o leitor escolhe interpretar Temor e Tremor num sentido estético, todo o seu propósito se perdeu. Só se o leitor rejeita o livro e o mundo e busca obedecer a Palavra de Deus é que a mensagem foi entendida. É uma mensagem muito difícil de se entender, não porque é complicada, mas porque é simples — simples demais para o mundo aceitar.

 "O cavaleiro da fé é atribuído só a si mesmo; ele sente a dor de ser incapaz de se fazer compreensível aos outros, mas ele não tem nenhum desejo vão de instruir os outros... [Ele] é uma testemunha, nunca um mestre" (III 128). Kierkegaard sofre a dor de ser incapaz de se comunicar com os leitores, mas ele sabe que ele não pode se fazer entender aos outros sem mudar a sua mensagem, o evangelho. Do silêncio ele tece a sua poesia, mas como Shakespeare ele também não pode revelar "seu segredinho", pelo qual ele "compra o poder da palavra para contar todos os segredos obscuros dos outros" (III 111). Esse segredinho não é nada mais senão que a verdadeira fé se revela na obediência.

 Então eu revelei o significado secreto de Temor e Tremor, de Kierkegaard? Não revelei. Tudo que eu expressei, tudo que eu posso expressar, são palavras e ideias. O segredo da fé não pode ser comunicado. Por isso, eu não o comuniquei, mas ele permanece no silêncio para todo o que quiser ouvir.

 Bibliografia

 Bíblia Sagrada, (diversas versões).
 Hong, Howard V. & Hong, Edna H., Fear and Trembling by Johannes de Silentio, Princeton University Press, Princeton, NJ 1983.
 _______. For Self-Examination by Søren Kierkegaard, Princeton University Press, Princeton, NJ 1990.
 _______. The Point of View by Søren Kierkegaard, Princeton University Press, Princeton, NJ 1998.
 Le Guin, Ursula, A Wizard of Earthsea, Bantam Dell, New York, NY 1968.
 Miller, A. V., Hegel's Phenomenology of Spirit, Oxford University Press, New York, NY 1977.
 Plato, Phaedo,
 de Sélincourt, Aubrey, The Early History of Rome by Livy, Penguin Putnam Inc., New York, NY 1960.
 
 (Obs: Com exceção das citações bíblicas, todo o texto e todas citações foram traduções minhas)

 Notas

 [1] Todas as citações de Kierkegaard quando não especificamente indicadas são de Temor e Tremor
 [2] [N. T.: Diversas versões da bíblia foram usadas na tradução, mas a nota original era:] a versão utilizada foi a NVI, exceto quando especificamente marcado.
 [3] Por enquanto eu ignoro o papel do pseudônimo Johannes de Silentio, que se tornará crítico para a argumentação a partir da parte IV.
 [Nota de Tradução¹: o termo "Great" é traduzido intercambiavelmente ao longo do texto como grande ou excelente; a ideia é de uma excelência louvável, que causa admiração.]
 [4] Ver Gênesis 22:3, 9-10
 [5] Por "a época" eu quero dizer o mundo como ele era nos tempos de Kierkegaard. Eu deixo como um exercício ao leitor determinar se a nossa época também sucumbe ao mesmo tipo de fracasso.
 [6] Para uma análise dessa passagem no próprio nome de Kierkegaard, que diretamente ao invés de ironicamente aconselha o leitor a se orientar em direção à ação, ver o primeiro capítulo de For Self-Examination, "What is Required".
 [7] Como citado por Kierkegaard em III 120-121 na tradução de Hong & Hong.
 [8] De The point of View, no qual Kierkegaard discute a natureza de suas obras como um todo.
 [9] Qual ele? Ambos.
 [10] Qual papel exatamente a fé ocupa na sequência de Hegel está além do propósito desse ensaio, já que a seção atual não pretende analisar Hegel exceto como uma das dramatis personae do livro de Kierkegaard. Em Temor e Tremor seu significado primário é como representante daqueles que presumem por meio da filosofia ir além da fé (III 59).
 [11] Mas não por Kierkegaard já que, como discutido acima, a técnica de Kierkegaard é uma bajulação irônica. Kierkegaard só quer magnificar a fé, entendida como envolvendo ação.
 [12] No meu paper do primeiro semestre, "Sete Abraões [N. T.: Abraãos?]", eu argumentei que os Abraões do Exordium possuem esse tipo de resignação infinita não normativa, que tem a propriedade de que ela muitas vezes se confunde com a fé, esse tipo de "fé" que os amigos de Jó têm.
 [13] Ver Marcos 3:13-30
 [14] De Johann Georg Hamann
 [15] Lívio, The Early History of Rome, 1.54
 [16] Fédon de Platão, 64a

 Nota de Tradução:

 Esse ensaio é de autoria de um certo Aron Wall, cristão muito culto. Acabei encontrando-o enquanto pesquisava sobre o tema e achei por bem traduzi-lo (com a permissão do autor) e disponibilizá-lo aqui, visto que não achei nada semelhante em português. Aqui abaixo o link para o ensaio na língua original, inglês. Espero que Deus te abençoe através desse texto!

Fonte original:

 WALL, Aron. The Poetic Secret of Fear and Trembling: or Some Suggested Ways to Avoid Faith. [S. l.], 20--. Disponível em: http://www.wall.org/~aron/thesis.htm. Acesso em: 16 jan. 2020.






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